A MENINA QUE NÃO SABIA RESPONDER

Olho pelas pálpebras entrefechadas e vejo antiquíssimas imagens.

Eu era uma pivete de uns quatro anos. São cenas sombrias mantidas em mim em silêncios de tumbas.

Frestas estreitíssimas de claridade mostram meu pai. Estou em pé. Quase nua em minha delicada inocência. O semblante severo dele me desnuda ainda mais. O frio me atormenta retardando as horas. No piso liso do box do banheiro de casa meus pés vigiavam meu corpo em sobressaltos.

Alto e magro de boca feroz meu pai exalava uma ladainha de perguntas. Que eu não sabia responder.

Penetramos em câmaras de tortura. Ele por não obter a resposta que queria e eu por não enterder pergunta alguma.

Regulou calmamente o registro de temperature do chuveiro para frio. Abriu a torneira. Uma cachoeira, com milhares de pingos gelados, caiu repentina sobre mim. Interrompeu a queda d’água.

Minha pele estava puída em arrepios. Me sentia esfoliada enquanto perduravam as perguntas.

Minhas mãos e eu estávamos emparedadas. A posição em que meu pai me colocava era extremamente dolorosa. E as perguntas desfiavam-me por dentro.

Mandou que eu me posicionasse de frente para ele. Que pusesse minhas duas mãos na nuca porque elas se esfregavam compulsivamente. Assim elas se separaram, mas ainda eram cúmplices do meu pesadelo.

Minhas respostas não eram as que ele queria ouvir. E agora eram débeis lamentos. Estava cansada demais. Porém, ele nem havia começado sua tortura, ainda.

Percebendo que minhas pernas bambeavam sobre o piso desbotado, exigiu que eu as flexionasse até perto de agachar. E me mandou parar assim. Permaneci com agonizante dificuldade. E as perguntas vinham como enxurradas de lama e dejetos. Ele vociferava. Eu oscilava como uma anã perante um gigante.

Um cheiro familiar alastrou-se pelos azulejos daquele banheiro. Eu havia feito xixi. Nem senti a quentura escorrendo pelas minhas pernas. Não senti nada. Só aquele cheiro a me consolar.

Ele resolveu sofisticar sua atuação e começou a balançar a porta do banheiro, num vai e vem frenético. Para aumentar o frio daquele mês de inverno. Eu estava de férias da escolinha.

A friagem beijava meu corpo com a língua. Eu tremia. E ele, perguntava. Mas eu não estava mais ali. Eu me observava. Eu estava fora daquele corpo que sofria. E nem mais respondia.

Por vastos quarenta minutos me vi naquela posição.

Escorreguei nas águas do meu corpo. Bati com a cabeça nos frisos do box. Uma tintura vermelha vibrante pincelou a tela do meu sofrimento. Meus cabelos que eram dourados tingiam-se das cores do pôr do sol.

Resolvi voltar para dentro do meu corpinho magro. As veias das minhas pernas estavam maltratadas. Meu rosto parecia coberto por um véu roxo. Meus braços eram como lençóis encardidos.

Aquele homem silenciara suas perguntas.

Minha mãe, que a tudo ouvia do quarto ao lado, correu para o banheiro. Confabulavam sobre a necessidade de levar-me ao pronto atendimento ou não.

Meu pai aventava a possibilidade de fazerem perguntas que ele não saberia responder.

Na minha testa abriu-se uma fenda por onde engrossava um filete de sangue. E acharam por bem que resolveriam dar os pontos eles mesmos.

Deitaram-me na minha caminha. Cobriram-me com um cobertor xadrez. Vermelho e azul. Senti a aspereza daquela coberta como se fossem plumas.

Meus olhos lacerados pela visão asquerosa do meu pai esquadrinhavam outras imagens.

Dormi. Não vi mais nada.

Mírian Cerqueira Leite

Mileite
Enviado por Mileite em 30/09/2016
Código do texto: T5777183
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