O perfume
E de repente, o menino que olhava os detalhes da vida se viu arrancando espinhos de uma rosa já deitada ao chão, como que pisada e desprezada, sob o sol escaldante no terreiro de cimento batido.
Durante dias muitos ali passaram, olhavam e ninguém sequer atentava para a rosa já quase sem pétalas, murcha, caída sob o passeio acimentado do quintal da rua cento e onze.
Certo dia, o menino esperto, já incomodado pela aflição que lhe sobreviera desde o tempo do perfume sentido, resolveu então como quem não quisesse nada, usar da sua vassoura de alecrim-do-mato para varrer o quintal.
Ele passeava, olhava cada uma das flores daquele quintal, mas a rosa pendida tinha seus encantos desde os tempos das muitas visitas. Nas primaveras fora morada das muitas abelhas recolhendo néctar. De dia o sol esvoaçava a bela rosa de um lado para o outro e de suas folhas tão verdes, brotos e mais brotos iam saindo, como quem anunciasse vida.
Cuidadosamente, tomado por um regador azul-escuro deixado dependurado no muro, assobiava feito um louco uma música que mal ele sabia qual era. Encheu o regador, com braços finos e sem forças, ergueu o pesado regador para regar as muitas flores. Sua atenção para todas as outras era grande, mas a rosa caída ao chão tomara de preocupações o franzino moleque de calças curtas.
O menino, a quem quase todos chamavam de desatento, fazia religiosamente suas tarefas, que era de regar e varrer aquele quintal onde aquelas flores haviam sido plantadas. Por certo sua avó lhe deixara uma grande missão, de cuidar, limpar, regar, abastecer a terra e retirar todas as tiriricas que as sementes daninhas traziam junto do esterco da fazenda Olhos d'água, do respeitado senhor Antero, um homem culto, talvez bom, porém, maldoso por natureza e pouco vigilante das suas tarefas.
Era domingo, dia de missa na igreja de sino barulhento, onde as oito era alvoroço nas revoadas de pombos. O sol ainda estava dando seus primeiros sinais do calor gostoso, quando desatento não hesitou ao aproximar-se da rosa caída ao chão. Mais que depressa tomando-se da sua vassoura, seu regador, encostando-os no canto da cerca tombada, parou diante da rosa deitada.
Olhou para um lado e olhou para o outro, novamente olhou outra vez, e certificando-se de que ninguém estivesse observando, cheio de si conversou com aquela rosa, que por vinte dias estava ali, totalmente lançada a quem quisesse pisar. As feridas da rosa doíam em desatento, como se lhe arrancassem o coração do peito. Ele sentia as dores de um ser tão bonito, que por meses abrilhantou a vida de todos do casarão velho da rua cento e onze. Eram dias de vida e de cores para todos da casa! Todos se maravilhavam da suntuosidade e beleza da pequena rosa amarela, de amarelo bem claro, singela.
E, dando seu adeus às pétalas secas, recolhia os espinhos da rosa, e delicadamente colocava um a um, um do lado do outro, formando um coração dentro da rosa com suas palavras. Ele cuidou para que o coração ficasse em local menos visível, para que ninguém perguntasse de quem eram aqueles espinhos tão agudos.
Desatentos eram quem apenas se encantava com a beleza daquela rosa sem a sentir como vida. Como uma macieira que não produz mais frutos, a rosa fora tratada, descartada e esquecida, mas desatento sabia que dentro daquela rosa, aquele coração batia, falava, tentava, gritava por alguém que pudesse lhe trazer à vida novamente. O ciclo da rosa fechou. Desatento sentiu-se como menino as coisas que bem quis, e como bem quis sentir, assim ele deu a ela o seu adeus.
Mas o coração da rosa estava pulsando, alegrando, saltando, pois dentro da rosa, além do coração deixado por desatento, haviam ainda sementes e mais sementes aguardando apenas o momento certo do próximo ciclo. Assim, por causa do perfume sentido e da sensatez de desatento, a rosa pôde renascer, e florir, e perfumar a vida de todos novamente, tudo por conta dos espinhos que simbolizava a sua proteção enquanto rosa. Rosa sem espinhos nunca seria rosa, por isso o perfume marcara tanto a vida de desatento.
Um adeus na vida de desatento não seria nunca um adeus, mas um "até breve!"
O perfume,
por Daniel Cezário.