O Frio de Julho

(Ao som de

Sapato Novo - Los Hermanos)

1

Fosse, talvez, normal para outras pessoas. Estranhamento, no máximo, estamparia seus rostos. Mas a sua vida era uma linha reta, que ao menor dos ruídos, se espantava em AM ou FM — embora para ele ambos fossem a mesma coisa. Esses ruídos e esse espanto eram sempre precedidos de uma torrente de cores, que duravam bem pouco, pois tudo sempre voltava ao ponto de início, com a linha em seu estado natural: reta e só.

Sua rotina era assim, acordava (ou quase isso), abastecia-se de uma quantidade enorme de café, realizava todos os procedimentos que já haviam se tornado mecânicos e imperceptíveis, percorria os trezentos metros que o levavam até o seu local de trabalho — onde permanecia grande parte do dia. Quando voltava para casa, a única coisa que havia era a TV e um álbum ou outro de música. A não ser que as pequenas coisas mundanas criassem um pouco de distração, como uma ida ao banco, à lavanderia, raramente ao bar da esquina. Sempre intercalando com cigarros e pensamentos que faziam tanta fumaça quanto. Talvez fossem os cigarros ou os pensamentos que deixavam seu dia tão cinza.

Mas em uma manhã no início do mês de fevereiro, foi diferente. Não que ele esperasse que algum dia houvesse de ser diferente (como diz o carma), não que ele houvesse descoberto isso no momento em que colocou o primeiro pé no chão (como diz a intuição), mas é um fato, e foi isso que aconteceu: uma caixa em cima da sua mesa de escritório destinada a ele, sem remetente, na sua mais pura cor vinho.

2

Nos primeiros dias, só espiou como quem não quer nada. Flertava com a caixa, bem discreto. Seus olhares não se demoravam muito, ele estava assustado e ela também. Ele pensava que nunca iria se acostumar com ela. Mas, estava enganado. Com o passar dos dias, ele conseguia manter o olhar fixo naquela belíssima caixa cor vinho. Quando completou uma semana, olhava tanto para ela, que tinha certeza de que se ela possuísse olhos, olharia de igual para ele.

Depois que o período de descoberta mútua passou, descobriu que havia uma coisa lhe causando um desconforto enorme, o contraste que essa caixa causava ao ambiente. Não combinava com a mesa de madeira bege, não combinava com os vasos de planta foscos, não combinava com as janelas simples, não combinava com as paredes claras... e estava claro que nunca havia visto caixa como aquela. E foi essa gritante diferença que o fez querer aproximar-se mais dela.

Foram necessárias duas semanas para ele ter a ousadia de abri-la. O motivo da demora fosse, talvez, pelo simples fato de que abrir a caixa acabaria com o mistério, com as cores temporárias. Ou porque tinha medo de que o que houvesse na caixa passaria bem longe do que imaginou, não queria se decepcionar novamente. Mas quando a abriu, descobriu que estava enganado sobre tudo. Desse dia em diante, sua rotina mudou completamente.

3

Levou-os imediatamente para casa. Nos intervalos de almoço ou depois do expediente, ele ia admirar os sapatos, ia lustrar os sapatos, cuidar dos sapatos. Ele construiu todo um território de segurança para os sapatos. Mas não ousaria calçá-los. Não. Não naquele momento. Não até que os sapatos se sentissem seguros.

Passou os quatro meses seguintes se expondo para os sapatos e viu que os sapatos faziam o mesmo. Passou a confiar nos sapatos e viu que os sapatos faziam o mesmo. Descobriu que amava os sapatos mas descobriu, também, que essa parte não era recíproca. Na verdade, isso não o afetou muito, pois criou mil e uma teorias na cabeça para explicar.

“Ah, o tempo não é o mesmo para todos"

“Vê? Não os amei tão intensamente de cara também”

O verdadeiro dilaceramento, porém, só veio mais tarde, quando descobriu que os sapatos eram dois números a menos que o dele.

4

Nos meses que se seguiam, ele decidiu tentar não notar os sapatos. Comprou outro par e tentou adicionar à sua rotina o álcool. Mas não deu certo. O par de sapatos que comprou era normal demais, a tontura proveniente do álcool não se comparava à tontura de estar sóbrio e ao mesmo tempo não. E os seus sapatos, os incríveis, sempre gritavam por ele. Então o que ele fez foi o mais estúpido que alguém pode fazer: calçou os sapatos.

5

Durante os dias, eles causavam uma sensação tão maravilhosa, tão entorpecente, que ele quase esquecia das dores noturnas. E elas sempre vinham. E ele sempre tentava ignorá-las. Sempre dormia chorando pela dor e acordava revigorado, faminto pelos sapatos.

Nesse período, andava sempre de peito estufado e sorriso estampado na cara. Exibia os sapatos por onde fosse. E foi numa dessas exibições que reencontrou uma velha amiga. A surpresa foi nítida: ela estava calçando um par incrível, desses de cristal. Sorriu.

6

Com o passar do tempo, porém, os contras de calça-los somavam mais que os prós. A felicidade passou a vir em menor quantidade e a dor começou a ser maior. Ele sangrava, seus pés sangravam. Tudo era sangue. Mas ainda sim insistia. Por mais autodestrutivo que fosse, insistia. Porque tudo o que tinha na vida era o cinza e quando não sobra nada na vida de alguém, o que essa pessoa pode fazer além de insistir no único resquício de cor que encontra?

Nessa insistência toda, perdera a noção do tempo. Era fevereiro de novo, fazia um ano desde a chegada da caixa. No que sobrou dos seus pés, haviam feridas, bolhas, dor. De repente, não conseguia ficar em pé por conta própria por muito tempo, os trezentos metros do seu trabalho até casa, a ida ao banco, à lavanderia, ao bar da esquina, eram as coisas mais difíceis dos seus dias. Mas sempre os colocava na manhã seguinte.

7

Em um desses dias de dor sua velha-amiga-reencontrada o telefonou e solicitou uma visita. E ele dirigiu – para evitar o sangramento – até lá rapidamente. Já estava acostumado, desde quando se reencontraram, não ficavam um dia sem se falar. Às vezes por telefone, às vezes pessoalmente. Às vezes com urgência, às vezes na calmaria. Mas, o assunto era sempre o mesmo: Solas, cadarços, pegadas.

Dessa vez foi diferente. Ela estava acamada. Contou-o sobre a real natureza dos sapatos de cristal, contou-o sobre as dores, sobre a insistência, sobre o sangue, sobre tudo. Isso o pegou de surpresa, o que exigiu muita calma para não deixar transparecer.

Ele tinha vontade de dizê-la que estava tudo bem, que ele também era assim, que iria ajuda-la. Tinha vontade de derramar sobre ela tudo que havia sentido nesse último ano. Mas, acima de tudo, queria impedi-la de continuar com isso. Queria que ela soubesse que ninguém deve calçar esses sapatos, não os desse tipo. Queria que ela soubesse que quando algo não se encaixa, não serve, ele não serve e pronto. Que, o que é autodestrutivo realmente destrói. Que nada acontece diferente só porque acontece com a gente. Queria falar tanta coisa e acabou não dizendo nada. Diria, sim, tudo isso a ela, mas só quando dissesse para si mesmo primeiro.

8

Já na sua casa, deitou na cama e tirou os sapatos. Era julho (mês que todos os sapatos nascem) e o frio se alojou nos seus pés machucados. Mal ele sabia, mas esse frio seria um lembrete para a vida toda.

Talvez os sapatos fossem amáveis apesar de tudo e sim, eles eram. Mas ele percebeu que não nos seus pés. Foi doloroso colocar aqueles sapatos que tanto amou – como ainda não tinha amado nenhum outro par na vida – na estante, mas foi necessário. Necessário porque só estaria bom, se ambos estivessem bem, ele e o par de sapatos. E agora estariam, seus pés iriam se curar um dia — amanhã ou em um ano; o não saber o assustava mais — e os sapatos poderiam escolher outros pés, uns do seu tamanho.

Mas, ao invés dos sapatos entenderem o afastamento do mais íntimo, eles saltaram a estante e foram embora. Sozinhos. Pois é assim que os sapatos são: egoístas. Mesmo que nosso dilaceramento esteja escrito em arial, 12 e negrito, eles fingem que são só contornos.

Talvez tudo tenha voltado a ser igual antes: Acordar, café, trabalho, TV, dormir — Cigarros e pensamentos esfumaçados. Ou, talvez, não. Quem senão o tempo pode dizer?