Diário da Pestinha: "Eu sei tudo"

DIÁRIO DA PESTINHA: “EU SEI TUDO”
Miguel Carqueija

Quando íamos nas férias ao sítio de meus avós maternos eu costumava encontrar meus primos Airton e Júlio, que eram alguma coisa mais velhos que eu e muito metidinhos. Sabem, eu podia ser novinha mas possuía um instinto muito aguçado em relação ao que as pessoas realmente eram. Esses dois, não me agradavam. Pareciam aqueles vilõezinhos de Harry Potter, seguidores do Draco Malfoy.
No dia em que, de surpresa, me jogaram vestida no rio, resolvi que me vingaria deles antes que as férias terminassem. Eles até se espantaram por eu não ter dado queixa... mas Aretha tem os seus próprios métodos.
Descobri que eles gostavam de penetrar numa espécie de sala de aulas que vovô e vovó antigamente usavam para ensinar por conta própria crianças da vizinhança, sempre que precisavam de lições particulares. Era uma cabaninha de paredes carunchadas, coisa muito antiga, dentro ainda existiam cadeiras, carteiras e um velho quadro verde na parede. Na platibandazinha do quadro, isto é na sua parte inferior, ficavam os pedaços de giz. Guardem bem esses detalhes, ser pestinha é uma arte e requer observação dos detalhes que possam vir a ser úteis.
Aquela sala costumava ficar trancada a cadeado. De algum modo eles conseguiram uma chave, abriam, entravam e de lá saíam, tornando a fechá-la. A verdade é que coisa boa não iam fazer. Levavam cigarros roubados de algum adulto, ou revistas que garotos mais velhos arranjavam e que nem adulto devia ler. Eu tinha informações fragmentárias sobre as sandices que eles gostavam de fazer.
Então, tudo se resumiu para mim em achar um jeito de penetrar naquele local, visto que eu não possuía a chave. Mas, vocês não imaginam quantas habilidades latentes eu tenho! Uma vez vi a Rita Pavone, no filme “O mosquito”, abrindo uma fechadura com um alfinete ou coisa parecida. Isso me convenceu que eu poderia também realizar tal façanha, e andei treinando. Tem que ter uma habilidade especial (ou seja, é preciso ser pestinha) e eu tinha...
Numa hora em que eu sabia que eles não estavam por perto, penetrei na sala e deixei no quadro verde, em letras bem grandes, a seguinte mensagem:


 
AIRTON E JÚLIO:

EU SEI TUDO

ASS. A PESTINHA


 

E se algum adulto viesse me questionar eu podia até negar. Afinal, não me chamo pestinha. Mas eu tinha certeza que eles apagariam recado tão comprometedor...
Eles foram me encontrar à beira do rio, sentada, na verdade esperando vê-los a qualquer momento. Eles me viram e vieram correndo até mim, ofegantes.
— Por que estão tão esbaforidos?
— Aretha, você entrou na velha sala de aulas da vovó?
Olhei firme para o Júlio, encarando as suas sardas.
— E por que você acha que eu fiz isso? Não tem cadeado na porta?
— Você escreveu aquela mensagem no quadro! O que é que você sabe afinal? — indagou o Airton, arfando.
— Se vocês leram aquela mensagem no quadro é porque vocês entram lá — respondi tranquilamente. — Algum adulto sabe?
— Você vai falar para alguém? Meninas são muito enxeridas!
— Cuidado, Airton, não me xingue! Não se xinga uma pestinha, você nunca sabe do que ela é capaz...
— Mas que é que tem a gente entrar lá, não é crime nenhum...
— Pois é. Mas mesmo que as janelas estejam fechadas, tem muita frestinha, o lugar é velho à beça...
— Você quer alguma coisa de nós — disse o Júlio. — Aposto que é dinheiro! Das nossas mesadas... só uma menina seria capaz de uma baixaria dessas!
— Para de falar idiotices. Claro que eu não quero dinheiro!
— Então o que é?
— Muito simples. Vocês dois estão vestidos da cabeça aos pés. Estão vendo o rio?
— Sim, mas ... balbuciou o Airton, já adivinhando o que eu queria.
— Joguem-se nele, os dois. E não tirem nem os sapatos.
— Não pode fazer isso com a gente! Vamos encharcar as nossas roupas!
— Mas vocês fizeram isso comigo, não fizeram? Eu dou um minuto para vocês se decidirem, porque como está no quadro, eu sei tudo...
— Mas que tudo é esse? — quis saber o Júlio.
— Tudo. Você sabe o que é esse tudo... ah, já passaram vinte segundos... mas prometo que não conto nada se vocês se jogarem e de corpo inteiro. Nada de andar pela borda. Pulem dentro.

Eles se jogaram. E suas roupas eram novinhas e bem passadas pela minha tia. Claro que depois levaram um tremendo carão, corte da mesada... comigo nada de mais acontecera, pois no sítio eu ando esmulambada mesmo e meus pais jamais se importariam de me ver molhada.
Nunca mexa com uma pestinha.

Rio de Janeiro, 26 e 30 de julho de 2016.





 
Miguel Carqueija
Enviado por Miguel Carqueija em 25/09/2016
Reeditado em 25/09/2016
Código do texto: T5771827
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