ela
Eu nunca tinha ousado lhe enfrentar. Na verdade, eu nunca tinha ousado lhe olhar, lhe falar. As coisas sempre funcionaram de forma pratica: nos aturávamos. Já chegamos até a viver juntas, eu, mais nova, ela, perdida. Não me lembro de nenhuma vez ter olhado nos seus olhos.Sempre fui o mais distante possível.
Aquele capricorniano fraco e distante me disse, como se eu não entendesse a verdade, que ela queria falar comigo, mas a verdade é que ele queria que, enfim, eu e ela nos falássemos.
Liguei e uma voz descontrolada atendeu. Engraçado porque eu nem lembrava com era sua voz.
É você? Como vai? Me diz, o que há?
A voz descontrolada tremia cada vez mais e as palavras me assustavam. Ela falava de suas doenças como se achasse piada tudo aquilo, como se fosse divertido e bonito.
- mas olha, isso é praga que a outra me rogou...
- cala boca, não fala isso
- você não sabe de nada, era muito nova pra entender, pra lembrar, ela sempre me odiou...
Pensei em falar qualquer coisa como ‘todo mundo sempre te odiou’ ou ‘ você bem que merecia tudo isso’, mas deixei passar. Os meus silêncios bastavam pra ela entender que eu também a odiava e que talvez a praga tivesse sido rogada por mim. Talvez, porque nem eu sei, talvez sim, nunca nos gostamos, inclusive eu sempre morri de ciúmes porque o capricorniano sempre gostou mais dela.
- você gosta dela né? Sempre vai defende-la
- claro que gosto, eu a amo, e sei mais do que você pensa sobre tudo que passou, se hoje você está com qualquer coisa é porque você fez por onde, você procurou
- é, eu procurei a morte, eu pedi pra morrer, eu pedi pra pegar estas doenças, fiz tudo pensado
Acho que ela pirou de vez, o tempo, a doença, os problemas, a maldade, fizeram da tristeza a loucura, exatamente como um psicopata que acha graça dos absurdos.
O outro telefone do lado de lá tocou, ela atendeu gritando, rindo meio histérica avisando que estava no telefone comigo e que o outro depois voltasse a ligar.
-é, estou toda fudida, estou bichada mesmo...
Me apertava o peito cada risada sem graça que ela dava, cada palavra horrível transformada em piada.
- Ah, se você precisar escrever algo sobre essas doenças, sei tudo sobre esses vírus viu? – completando com um riso irônico e seco.
Devem ser os remédios, só pode, ela me disse que tem tomado muitos, anti depressivos, calmantes, remédios pra dormir, além das vitaminas e os coquetéis por causa do HIV.
Eu perguntei pra ela se ela sabia de quem tinha pego, ela disse que o tempo todo sabia que ele tinha aids e quis morrer mesmo, que no meio da transa mandou o tal tirar a camisinha, que ela tava bêbada. Além disso ela tem uma ulcera que diz que herdou do pai, e mais um outro vírus que sabe-se lá como pegou.
Fez questão de contar isso à toda família, avó, tias, inclusive sua filha de oito ou nove anos.
- Eu estou morrendo cara, vocês vão ter que segurar nosso pai quando eu for embora, e ainda tem a criança.