A MENINA QUE NUNCA CONSEGUE CHEGAR

Sofia é o sonho sem coração que o abrigue.

Nunca teve um mundo onde habitar. Emagrece à olhos vistos porque é isto que acontece com as pessoas sem lugar.

Sofia nem casa tem porque não tem mundo. Mora numa casa que não pode ser casa. Casa é lar. E isso ela não tem. Casa é lugar de encontros. De pessoas da família. De amigos. De alguém. Que ama e quer estar ali, junto.

Sofia tem teto e tem fome. Fome que não se descreve. E nem se fala. Se sente. Mas Sofia ainda tem um sorriso doce. Talvez isso engane sua fome. Talvez isso não deixe que seus olhos se afundem no poço da falta.

Sofia não vive e nem pertence. São as situações de sua vida que tomam posse dela. Seu corpo. Seus gestos. Não são dela. São das circunstâncias. Que lhe conformam. Que lhe dão os jeitos e os trejeitos.

É no seu corpo e na ausência das carnes que ela se reconhece como prova que existe. Mas que não pertence. Algo ficou pelas calçadas cinzas e frias nas ruas de sua infância. E é em meio às ruínas que busca e rebusca o que restou de si mesma.

Sofia caminha para frente. E sabe que não tem para onde voltar. Restam-lhe seus pés. E eles estão se cansando aos poucos.

Aos olhares do mundo Sofia não é considerada pertencente. Porque não cabe no conceito de pertencer. Pertencer é dentro. É genérico. Sofia, do jeito dela, sabe que pertencer é dentro e é fora. Sim. Ela não pertence. Porque pertencer é não passar fome nem de comida. E nem de carinho.

Só cabem 12 anos no seu corpo de 35. Seus olhos revelam muito mais do que podem ter.

Quando entrou naquele ônibus Sofia só queria ser vista. Queria sentir que existia. E esta quase feliz.

Foi quando um solavanco acordou todos os olhares. E todos os ouvidos ouviram ao mesmo tempo um som estonteante de vidros e corpos quebrados. Gritos gargarejavam sangue, saliva e lágrimas.

Mochilas e bolsas. Casacos e pastas. Livros, celulares e salgadinhos. Se misturavam com gente amontoada. Um monte só. De coisas ensopadas de trajédia.

De repente. O silêncio. E o ronco do motor aos poucos e pouco a pouco parando… parando.

Sofia olha. Lá em cima está a rodovia. Sob seus pés não havia chão. Só as copas das árvores. Ela ficara enroscada num galho quando a porta do ônibus abriu e a arremessou antes de cair ribanceira abaixo.

Aos poucos se desvencilha dos verdes obstáculos. Desce com cuidado.

Nada pode fazer mediante à cena que aniquila qualquer gesto. Aproxima-se o suficiente. E chora.

Afunda os olhos para dentro de si mesma. Não há sobrevivente ali. Só ela. Sofia. Aquela que nunca consegue chegar.

Mírian Cerqueira Leite

Mileite
Enviado por Mileite em 21/09/2016
Código do texto: T5768133
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