A MENINA QUE DEIXOU DE SER CRIANÇA
LAURA
Laura era apenas uma criança cheia de expectativas do que seria o mundo ao seu redor.
Contava seis anos de idade e estava na primeira série do antigo Grupo Escolar. Maravilhada com o universo das letras e dos números. Espantada com tantas crianças barulhentas e agitadas. Quantas cores diferentes! Quantas vozes diferentes!
FAMÍLIA
Filha nascida de pais velhos. A família já estava constituída quando Laura nasceu. Eram quatro irmãos. Duas irmãs com 20 e 19 anos e dois irmãos com 17 e 15 anos. E aquele bebezinho não sabia de nada, ainda.
Mas todos tinham que trabalhar. Tinham que viver suas vidas como estavam fazendo até aquele momento.
E Laura ficava em casa com sua mãe.
Onde ia a mãe. Ia Laura. E a mãe ia à igreja todos os domingos. Pela manhã e à noite. Também às terças de manhãzinha. Bem de manhãzinha, para o culto matutino. E às quartas à noite para o culto vespertino. E Laura ia junto.
Também frequentava a sociedade de senhoras onde sua mãe era a presidente. Só gente grande e velha. Eram senhoras aposentadas. Nenhuma criança. Nenhum brinquedo.
BRINQUEDOS
Quando Laura entrou para a primeira série aos 6 anos, sua mãe doou todos os seus brinquedos. Porque a escola não era mais uma brincadeira. Agora a vida seria séria.
E lá se foram seu guarda-comidas azul. Suas panelinhas de alumínio com tampinhas vermelhas. Seu fogãozinho branco. Seu aparelho de chá cor-de-rosa. A mesinha de madeira com as duas cadeirinhas. Suas duas bonecas. A Lili que era de louça. Andava e girava a cabeça de um lado e de outro. A outra era a Secretária, de vinil, com seus loiros cabelos de ráfia.
E o caleidoscópio cheio de formas coloridas... E o triciclo que Laura apostava corridas com as paredes do longo corredor da casa.
Mas a mãe deixou ficar o Bebê. Rechonchudo e careca. Macio ao toque. Era de borracha e cheirava a talco.
CHUPETAS
O pai de Laura comprava chupetas coloridas e de variadas formas. Eram de argolas, galinhas, patinhos, bolas, florzinhas.
Sua mãe amarrava num barbante as sete chupetas e fazia um colar. Todas as noites, antes de dormir, Laura chupava cada uma delas. Era um ritual de despedida. Depois as pendurava do lado de dentro da porta do seu armário de roupas. Pela manhã lá ia ela. Chupava cada uma delas. Era um ritual de boas vindas. Lavava. Conversava com elas. E as colocava de volta no armário.
Quando ficava triste. Quando se sentia sozinha. Ia para o consolo delas.
MAMADEIRA
Aos três anos a mãe achou que não ficava bem tomar leite na mamadeira. Comprou um bico vermelho de borracha e colocou no gargalo de uma garrafa vazia de guaraná. Laura adorava isso.
DOCES
Todas as noites, Laura esperava o pai voltar do trabalho. Ela sabia. Ele trazia doce escondido debaixo do chapéu. Era o chocolate da Kopenhagen que ela mais gostava. Embrulhado em papel celofane amarelo por fora. Um outro papel, laminado dourado com o desenho de uma bailarina, cobria um chocolate de duas cores. Branco e marrom.
A mãe não podia saber sobre os doces. Este era um delicioso segredo entre pai e filha.
Uma noite o pai trouxe sorvete em palito, de groselha. Riram muito porque a careca do pai estava gelada.
FIM DA INFÂNCIA
Foi num dia chuvoso. Era a hora em que o lixeiro passava.
Na outra semana seus brinquedos haviam sido doados. Agora seria a vez de despedir-se, para sempre, de sua joia. Seu precioso colar de chupetas.
Foi até o armário. Retirou o colar pendurado na porta. Chupou cada uma delas. E as entregou ao lixeiro. Ele disse que ia dar para a filha dele que ainda era uma criancinha.
Laura sabia que era o fim. Fim do leite morno na garrafa vazia de guaraná com seu bico vermelho.
Sabia também que não haveriam mais os doces debaixo do chapéu do pai.
Mírian Cerqueira Leite