A fuga de Gardênia
Gardênia queria preparar sua fuga. Se soubessem que pretendia fugir, ficariam pasmos e a chamariam de louca. Não entenderiam a razão pela qual desejava fugir de sua vida. Diriam:
-Mas, Gardênia, você tem uma boa vida, uma boa família. Por que deseja fugir de tudo isso?
Como explicar a todo mundo que ela não gostava de nada que fazia parte de sua vida? Desde o princípio, sempre achara sua vida uma droga e agora, com trinta e poucos anos, queria fugir porque não havia outra saída. Como filha mais velha, só tivera obrigações, sendo obrigada a suportar irmãos mais novos mimados e chatos, como se fossem seres superiores e intocáveis. E um pai que implicara com ela pelos motivos mais tolos, ao passo que os irmãos mais jovens podiam fazer tudo que queriam sem sofrer nenhuma punição. Na verdade, o pai não apenas implicara, ele também batera nela algumas vezes sem que ela fizesse nada de errado.
E sua vida mudara alguma coisa? Não, ela ficara mais velha, mas sua vida continuara a mesma coisa chata e sem nada de marcante. A mãe lhe dizia para ter paciência, que Deus lhe faria justiça, porém, ela, Gardênia, não vira a justiça chegar, vira apenas o tempo passar. Talvez Deus estivesse ocupado demais com coisas mais importantes para prestar atenção a ela, que não conseguira sair do esquema injusto e doentio da casa familiar, não namorara, não casara e se encontrava naquele momento ali, bem passada dos trinta, diante do espelho em seu quarto, frustrada, infeliz e sentindo que tudo que fizera fora envelhecer sem ter vivido a vida por não ter alcançado a tempo a independência financeira, visto que por muito tempo dependera de uma minguada mesada que o pai lhe dava quase como uma esmola, jogando na sua cara que ela não era nada sem ele.
Para piorar, ela sabia que não adiantava se lamentar. Não resolveria nada. Pensou em toda a luta que travara para que sua vida não tivesse se tornado exatamente o que se tornara. Estudara muito, fora excelente aluna, lutara para passar nos concursos públicos, entregara seu currículo a várias empresas. Entretanto, parecia que havia uma maldição contra ela, para que ela não fosse feliz, nunca pudesse sair de junto de uma família onde uns só faziam o que queriam e sufocavam outros com seu maldito egoísmo enquanto que os que só queriam viver um pouquinho, como ela, consumiam-se numa rotina injusta e massacrante. Isso a fizera se perguntar se valera a pena ser tão direita e séria, se ela só fizera perder toda sua juventude, ao passo que a irmã só namorara e curtira a vida.
O pai, claro, dissera que ela é que era feliz, ficando em casa em vez de namorar, que ela não era para casar, porque ela, Gardênia, não era tola como a irmã que ia a festas, bebia e namorava sem compromissos. Porém, Gardênia nunca quisera fazer como a irmã. Ela quisera casar e ter filhos, constituir família. Pensar nisso ainda a fazia chorar em frente do espelho.
-Cá estou eu, uma moça velha com bem mais de trinta anos. Não tenho um emprego que me realiza, não casei, não tenho filhos, não consegui ir embora da casa dos meus pais. Para que foi que nasci? Qual o sentido da minha vida? Tenho que fugir disto tudo!
Para onde iria? Para qualquer lugar onde pudesse cheirar um pouco de liberdade, onde não pudesse sentir a presença da família, respirar um ar diferente. Não poderia mais se realizar como mulher. O tempo de se entregar a um homem acabara. Era algo que ela precisava aceitar.
-Há coisas que não podemos superar. Temos que aprender a viver com elas. E o fato de ser uma moça velha é uma delas. Nunca terei filhos.Também nunca serei realmente feliz e viverei com o peso da infelicidade para o resto dos meus dias. Mãe diz que Deus pode estar me poupando de desgostos, mas quem pode saber? A vida é riscos.
Havia algum tempo que juntava dinheiro e sabia de lugares para viajar. Foi contando o dinheiro, esperançosa. Ligou para a Rodoviária. Ouviu a voz do pai, que voltava do mercado. Seu coração se encheu de ódio. Tinha tanto ódio e ressentimento do pai que nem lhe desejava a morte. Preferia até morrer antes dele, para que ele soubesse que lhe arruinara a vida. Chegara a planejar seu próprio suicídio várias vezes e visualizara um esboço de carta na qual lhe dizia como ele lhe destruíra a vida. Depois, ouviu a mãe.
-Gardênia, que está fazendo, sua idiota? Está dormindo? Venha ajudar a descarregar as compras. chamou o pai.
-Ora, pare de implicar com ela. pediu a mãe.
Pacientemente, Gardênia desligou o telefone e foi ajudar. O pai disse com voz pomposa:
-Veja, comprei seu sabonete preferido, Gardênia. Não vê como sou bom para você?
Gardênia nada disse. Aquilo era demais. Depois que ajudou os pais, resolveu dar uma saída. A mãe perguntou:
-Aonde vai, querida?
-Dar uma volta na praia.
O pai provocou:
-Não invente de colocar um biquíni. Você está velha e engordou.
Fuzilou o pai com o olhar e ele replicou:
-O que é isso? Você fica toda magoada? Não aguenta uma simples brincadeira?
Gardênia respondeu:
-Quem ainda hoje faz piadas com a história do pit bull que matou o meu gato?
Saiu, pensando no quanto desejava fugir, ir para longe de tudo aquilo.
Na praia, passeou, olhando o mar, pensando no quanto as ondas pareciam chamativas. Temia a morte, o desconhecido? Não. Temia mesmo a vida, o conhecido. A vida só trazia rotina, obrigação e dores. Ela nascera e não conhecera alegrias marcantes. Apenas dores que haviam se acumulado. Ficou sentada, pensando, as imagens de sua vida rodando em sua mente horas a fio, os olhos fechados.
Depois, foi divagando e imaginando o que poderia ter sido, deliciada com a possibilidade de sonhos realizados, os amores que poderia ter vivido, os lugares visitados, as emoções, realizações, objetivos, planos e tudo mais. Permaneceu horas e horas sentada no banco, não vendo o tempo passar, o sol se pondo e tingindo o horizonte de um cor-de-rosa dourado nem as ondas do mar batendo suavemente na areia, as espumas formando uma espécie de colar. Estava de olhos fechados, absorta, sonhando, não ouvindo nada, somente o chamar da liberdade.
Quando enfim levantou, quis dançar. Ensaiou uns passos, mas seu coração estava descompassado. Caiu na areia, rindo e chorando, sentindo-se livre como jamais se sentira em toda sua vida, sabendo que finalmente seria feliz.