A BRABEZA

A BRABEZA

Devido a dimensão das fazendas no passado, e a consequente liberdade do gado dificultava traquejo homem com ele, por esse motivo era normal, por descuido do fazendeiro, o plantel embravecer-se e tornar-se selvagem , o que caracterizava, “ brabeza!” A partir de então, a captura era serviço para vaqueiros consagrados: homens bons de campo, de montaria, de laço e de aguilhão. Estes geralmente trabalhavam a meia. Ou seja, capturava a reis braba, amansava-a e depois de fazê-la dócil recebia ou pagava conforme o combinado pela mesma, 50% (cinqüenta por cento) do seu valor então avaliado.

Dependendo da habilidade do vaqueiro, este se tornava famoso ou até ídolo, a exemplo dos artistas de hoje: craques de futebol, cantores de sucesso, atores, etc. Hoje existe a mídia que dissemina os artistas e torna-os conhecidos até mundialmente. Num passado não muito longe, isso não existia. Os valores eram outros: as pessoas eram medidas pelo que produzia com o trabalho. Se somava a sociedade para facilitar a sobrevivência humana. Os valores inverteram!

O vaqueiro, aquele que laçava, que manejava a aguilhada com precisão e que montado num cavalo soltava-o a toda brida, no cerrado, na caatinga, nas matas entre árvores, moitas, cupins, buracos, pedras e toda sorte de irregularidades do solo e empecilho no espaço, perseguindo de um animal que fugia da captura.

Plínio Jarbas Valadares, nas décadas de quarenta e cinqüenta do século XX era um dos vaqueiros mais completos do vale do Urucuia.

Na realidade, eram dois os vaqueiros assim considerados: João do saquinho, que bem mais velho e que teve seu apogeu primeiro e Jarbas, todavia, os dois foram contemporâneos.

Esses detinham todos os atributos indispensáveis ao bom vaqueiro. Contudo, João do Saquinho, era único na aguilhada, ou seja, no trabalho de um boi com o ferrão. Embora, Jarbas, seu discípulo, também já se destacava nesta arte.

Bem, no final dos anos quarenta, numa manhã de março, Jarbas, seu irmão mais velho, Lucas cordeiro Valadares e João do Saquinho, saíram para “pegar brabeza”, ou seja, capturar reses selvagens nos campos da fazenda Pasto dos Bois e matas das vazantes do rio São Miguel, no vale do rio Urucuia.

Era época das águas, mas naquela manhã não havia jeito de chuvas. A terra estava molhada, os córregos, ribeirões e rios fartos de águas ainda pardas em virtude das últimas enchentes, porém, era dia de sol.

A várzea da Taboca, localidade da fazenda, estava inundada, com aproximadamente um palmo de água escorrendo constantemente. O capim estava de ponta, verdinho e o gado gordo, esbanjando energia e a qualquer sinal de gente saía em disparada para desaparecer nas matas das vazantes do ribeirão Jibóia e rio São Miguel.

Os três vaqueiros vislumbraram uma pequena maloca de gado ao longe, na várzea, detrás de um capãozinho, às margens do ribeirão Jibóia. Seguiram com cuidado para não chamar a atenção andando pelo lado de baixo no sentido do rio São Miguel.

Depois de onde o gado se encontrava tinha o ribeirão Jibóia com barrancos altos e do lado de cima existia um pouco de várzea, depois, um cerrado ralo que ia até ao pé da serra. Assim, se guardassem a margem do rio São Miguel, seria fácil um cerca-lourenço e o encurralamento do gado e, cada um laçaria a reis que lhe aprouvesse, vez que esta era a única forma de capturá-las.

Os três vaqueiros se distribuíram estrategicamente: Jarbas do lado de baixo; Lucas do lado de cima e João do Saquinho, entre os dois.

O vento soprava favorável, do poente para o nascente de onde eles andavam vindo, assim não seriam denunciados. Já se encontravam bem próximo, quando um carcará se assustou e voou emitindo o seu característico: craaac e fez o gado arrancar de súbito.

Eram umas oito cabeças de gado adulto e selvagem, que ao percebê-los arrancaram pra frente conforme eles haviam previsto e se espalharam quando sentiram cercadas. João do Saquinho, um ás no laço e já com a laçada pronta na mão, lançou-a, sem margem de erro sobre uma novilha amarela de aproximadamente 03 (três) anos. Era gorda, bonita, de pelo fino, com manchas brancas; “bruta que nem um portão!” Ao ser laçada, pulou e berrou tentando escapar, mas já estava amarrada.

Quando a laçada “abraçou” os chifres da novilha, João do Saquinho, vaqueiro experiente, alinhou o cavalo para receber o tranco. Recebeu e resistiu. O laço abotoado na chincha esticou violentamente e afinou igual corda de viola. A novilha também sentiu o impacto e automaticamente foi arrastada para trás, por uns dois metros e subiu mais ou menos um metro e desceu de prancha no chão, berrou e esperneou tentando levantar, nesse ínterim, o peão saltou sobre ela, colocou os joelhos sobre o seu vazio e como num passe de mágica, passou a cauda da mesma entre as pernas dela, para assim, deixá-la estrebuchar!

João ficou segurando-a naquela posição por mais de trinta minutos, até que ela sentiu-se vencida e entregou-se. O peão acostumado com tal situação agia naturalmente e sentia-se muito a vontade e completamente senhor da situação: sentado sobre a bruta imobilizando-a.

Com a mão esquerda puxou o cavalo até bem perto e desabotoou a hiapa da chincha no arreio, soltando o laço, pois o usaria para peá-la e deixá-la inerte no chão, enquanto buscaria a “madrinha” para conduzi-la até o piquete.

Lucas havia saído em disparada atrás de um pinguelo de uns três anos. Era um boi chita de branco com vermelho. Foram no rumo da serra e, quando descendo na ladeira do Mandingueiro, pequeno córrego de barrancos altos e ladeira estreita e encaixotada, o bicho hesitou e o vaqueiro ganhou sua “seda.”e segurando-a passou um pouco a sua frente e aplicando o tranco, o fez rodopiar, cair e rolar ladeira a baixo. Ao levantar recebeu a laçada. Saltou, berrou, mas estava amarrado com doze braças de laço de couro de mateiro. Ali mesmo ficou atado num pé de pitomba.

Jarbas havia escolhido um marruás de uns seis anos. Era amarelo encardido quase pardo, com manchas brancas: cor, café com leite. Era um Boi bonito, comprido, de couro solto. Bom de barbela, cupim empinado e chifres curtos e grossos. Ligeiramente cumbuco. Tinha a testa boleada e orelhas grandes. Um cruzamento das raças, indubrasil e gir, predominando o sangue desta última.

Ao ver aquele resultado de mistura bem sucedida de duas raças zebus, representadas naquele exemplar de animal que sugeria algumas arrobas de carne de primeira qualidade, o peão decidiu por sua posse e partiu para conseguí-la, custasse o que custasse. Saiu em disparada na perseguição do mesmo, rumo a barra do ribeirão Jibóia, no Rio São Miguel e embrenharam na mata úmida e cheia de armadilhas: solo escorregadio, galhos baixos de árvores, cipós, moitas de espinhos de agulha, etc.

O boi conhecia bem aquela terra, portanto, levava vantagem. Numa estratégia instintiva desceu a ladeira que dava acesso à bebida no ribeirão e desceu para dentro da água descendo, rio abaixo pela água. Depois subiu o barranco, escorregando, atolando, fincando as patas no barro e deixando marcas profundas, saiu lá fora na mata do mesmo lado de antes e sempre com o peão em seu encalço. Este para tanto, subiu o barranco com muito mais dificuldade que o boi e, por um momento o perdeu de vista, mas, ao sair da mata para a várzea, o viu entrando de novo nas vazantes. Seguiu-o e quando já o alcançava, pois aquele, pensando haver se livrado do perseguidor e já cansado, seguia apenas andando num trote lento. Porém notar que a perseguição se mantinha, renovou as energias para continuar a correr com a velocidade de antes.

Margeou o rio para cima, por entre os mangues e encontrou outra ladeira de bebida, desceu e foi um pouco pela praia e em determinado momento sentiu-se encurralado pelo insistente vaqueiro e atirou-se no poço e, a nado ganhou o outro lado do rio. A partir de então se encontrava na fazenda Cambaúba e livre do teimoso vaqueiro.

O sol já virava do meio dia e Jarbas com fome e sua montaria cansada e estropiada, entendeu que não seria prudente tentar atravessar aquele poço a nado e ainda o barranco, do outro lado era alto e escorregadio. Mas... Desistir? Jamais! Daria um tempo, mas não deixaria o boi recuperar o desgaste da corrida e para tanto voltou um pouco, atravessou o rio no vau e chegou a fazenda. Foi carinhosamente recebido pelo velho Miguel Torres, o proprietário da fazenda Cambaúba. O peão explicou o que era evidente pela aparência sua e da montaria arquejante e suada. Ele, sem o chapéu, pois havia perdido. Todo marcado por espinhos, sangrando nos respectivos arranhões e roupas reduzidas a trapos.

O velho fazendeiro, calmo, amável e serviçal, cheio de boas maneiras e obséquios, o fez desmontar e ofereceu-lhe almoço, enquanto mandou Constantino (empregado da fazenda) desencilhar o cavalo, dar-lhe um banho e soltá-lo no pasto e justificou para Jarbas, com sua voz fanhosa: “Este, por hoje cumpriu sua missão e agora tem direito ao merecido descanso”. Em seguida, mandou a João de Isaltina, o vaqueiro, buscar o melhor cavalo de campo da fazenda para ceder ao jovem peão que deveria continuar com a captura do marruás, café com leite. A história contagiou o velho e este “comprou” a causa!

Já passava bem do meio dia, mas o peão reanimado, sede e fome saciadas e ainda montado em um cavalo descansado, cheio de energias, demonstrando vigor e querendo trabalhar, faltava ele colocar de novo os olhos naquele boi! Foi observando enquanto andava margeando o rio, até que deduziu que o boi teria entrado cerrado afora para despistá-lo e buscando se amadrinhar a outro gado.

O vaqueiro atravessou o cerrado se distanciando do rio e chegou à cabeceira do Mulungu. Desceu córrego abaixo. O sol já se abaixara e não demoraria se pôr, pensou ele.

De repente, ele vislumbrou o marruás que, sozinho pastava tranquilamente. O peão parou para organizar as idéias e programar as suas ações. Agradeceu aos céus pela sorte. Ali tinha muita facilidade prá encurralar o bicho! Pois estavam na barra do córrego Mulungu que se transformara num brejo e formava um triângulo de difícil saída, entrando na Vereda das Pedras.

Aproximou-se com cuidado, pois precisava chegar o mais perto possível sem ser notado, porém antes da distância de laço, o boi o notou e saiu em disparada. Mais o cerrado era ralo e o cavalo, bom de pernas e acostumado aquele trabalho, ganhou terreno chegava perto do boi e o peão pegou sua cauda, o cavalo treinado para aquilo, sabia a lição de cor e salteado, abriu-se para criar o espaço necessário para a puxada que foi aplicada e... Sucesso total! O bicho foi ao chão e devido à velocidade em que se encontrava, rolou, espigão abaixo e quando conseguiu a se levantar recebeu a laçada e, o cavalo, bom de chincha, mais uma vez cumpriu sua parte: obedecendo a comando do vaqueiro, deu um pouco de corda e se posicionou ao contrário estacando-se e firmando os cascos no chão para agüentar o tranco que fez o boi empinar, puxando-o por um passo e caindo de costas. Ao cair emitiu um mugido, misto de lamento e gemido. Talvez um soluço animalesco que fez aquele chão estremecer e despertou os sucuris adormecidos na lama do fundo do Mulumgu.

Naquele momento, ia passando um velho vaqueiro que morava nas imediações e vinha vindo das freqüentes vaquejadas, assistiu aquela peleja de homem e boi e como bom vaqueiro que era, andava prevenido para qualquer emergência daquela natureza, saltou do cavalo e foi ao auxílio do colega para imobilizar o boi selvagem e pesado. Os dois o deixaram amarrado em uma árvore enquanto buscariam a “madrinha” para levá-lo ao piquete, que seria um velho boi carreiro pesado e manso ao qual o atrelaria.

Eram essas lutas, os valores do passado e as brincadeiras das crianças eram representando esses acontecimentos vividos e contados, geralmente nas noites de luar em volta de uma fogueira e na frente de um bule de café quentinho, acompanhado de mandioca frita ou petas, bolos e pão de queijo.