50 METROS*

-Quê?!

-Você está inscrito na prova de nado borboleta.

-Cê tá louco? Eu nunca nadei essa porra na vida!

-Ué? Você falou que dava umas braçadas...

-Umas braçadas! Nunca mais de dez metros. Essa coisa cansa que nem o inferno!

-Agora é tarde. Já te inscrevemos e tiram pontos por WO. Mas fica frio, é só você e outro cara. Em terminando você já é medalha de prata.

O veterano saiu e o deixou no vestiário da piscina. Puta que pariu, e agora? Saiu e olhou para as arquibancadas lotadas e as telas de separação cheias de gente. Não tinha como voltar atrás. Olhou para a piscina. 25 metros. Ida e volta. Só tinha que completar a prova. Talvez desse...

Começou a fazer um novo alongamento. O corpo inteiro doía. Tinha acabado de fechar o revezamento de nado livre, e não era só isso. No dia anterior tinha jogado uma partida inteira de volley como levantador, uma de handebol e metade de outra de basquete como pivô. Estava quebrado. Mas era o preço a pagar. Desde o começo do ano lhe tinham feito a maior festa por se dispor a participar dos jogos regionais entre as faculdades de psicologia. Como a grande maioria dos estudantes eram mulheres, os homens valiam ouro nessa hora. Só a sua universidade e uma outra, as duas mais conceituadas do estado, tinham conseguido se inscrever em todas as modalidades masculinas. Mas era algo desumano, dez caras para jogar volley, basquete, handebol, futsal, tênis de quadra e de mesa, atletismo e natação. Em quatro dias! Os veteranos contavam da loucura que era, mas só agora conseguia ter a noção real da coisa.

-Os competidores da prova de nado borboleta queiram por favor se dirigir a piscina. A voz do alto falante do clube sou incrivelmente alta em seus ouvidos. Suspirou fundo e levantou-se. Percorreu os dez metros desde o vestiário com se fosse para o cadafalso.

Refez o alongamento enquanto olhava para seu competidor. Era um mulato magro e baixinho. O corpo dele parecia ser só músculos. Olhou para si mesmo. A barriga enorme, os braços e as pernas finas. Meu! Não tem importância. 50 metros. São só 50 metros. Subiu no bloco de partida da raia quatro. O outro subiu no da raia seis.

-Em suas marcas. Preparar. Vai!

Sentiu o frio da água novamente. Era quase um bálsamo para a quentura que sentia de todas as partes doloridas do seu corpo. Logo de cara percebeu que seu concorrente já tinha colocado pelo menos uns dois metros de distância entre eles. Pôs a cabeça e o peito para fora da água e deu a primeira braçada. Vai dar! Vou conseguir! Nossa, vai ser a glória. Se já estava catando umas meninas agora, imagina quando voltarem da competição? E pensar que toda sua vida nunca dera importância nenhuma aos esportes. Sempre estudando para poder entrar em uma universidade pública. O que menos tinha feito naquele ano fora estudar. Treinava dia e noite embalado pela esperança do reconhecimento. Subiu a cabeça e o peito o mais alto que conseguiu e desceu com toda a força os dois braços na água. Embalado seguiu assim por mais dez metros, até ver o outro passar por ele já voltando para a linha de chegada.

Sentiu aí o preço de sua animação. O peito começou a arder e os braços a doerem. Calma, calma. é só conseguir terminar a prova. A borda da piscina estava só a uns três metros. Diminuiu o ritmo. Quando chegou ali e se virou, bateu o desespero. A outra ponta parecia estar a quilômetros de distância. Mas não podia desistir, não podia se prestar a esse vexame. Deu impulso com as pernas na parede o mais forte que conseguiu. Para sua surpresa mal saiu do lugar. Fora que começou a sentir uma dor lancinante na batata da perna esquerda.

Câimbra! Câimbra! Não podia acreditar. Neste instante se deu conta dos gritos que vinham das arquibancadas. Malandro, são mais de 300 mulheres me vendo, fora que estão filmando! Reuniu todas as suas forças para ignorar a dor, levantou o peito e deu mais uma braçada. No que submergiu a cabeça sentiu que iria se afogar. O pensamento de todas aquelas pessoas vendo-o afundar lhe deu forças para voltar. Os braços que no começo faziam longos arcos, mal se erguiam. Já não havia uma parte do seu corpo que não gritasse desesperadamente para que ele parasse. Lembrou-se de uma frase que tinha lido há muitos anos: a humilhação é um inimigo da vida muito pior que a morte. Deu mais uma braçada. Parecia que estava nadando cachorrinho. Com todas as suas forças deu mais uma. Na hora de respirar engoliu mais água do que ar. Não havia jeito, tinha que desistir. Quando ia parar escutou o grito de trezentas vozes femininas juntas:

-Vai!

Sentiu todo um vigor novo. Era como se todo apoio daquelas vozes entrassem em seu corpo e o impulsionassem para frente. Deu mais uma:

-Vai!

Iria conseguir! Precisava conseguir! De repente não existia mais nada no mundo, só a dor e a próxima braçada:

-Vai!

Mais uma! Só mais uma!

-Vai!

Aguenta, aguenta. Só mais uma!

-Vai!

Engoliu mais uma lufada enorme de água. Por um instante afundou, mas uma força maior pareceu lhe trazer do fundo.

-Vai!

Lançou seu braços para frente com todas a energia que lhe restava. Um puro êxtase lhe tomou quando sentiu-as baterem na borda. E nisso todo vigor foi embora. A última coisa que percebeu antes de perder a consciência foi que alguém tinha mergulhado ao seu lado.

Uma claridade enorme o atingiu enquanto começou a tossir água. Sentiu que estava deitado no cimento e distinguiu alguns vultos e vozes preocupadas. De repente ouviu com toda clareza o som do alto falante:

-O nadador da raia quatro foi desclassificado.

-Quê?!

Aristoteles da Silva
Enviado por Aristoteles da Silva em 14/09/2016
Reeditado em 29/03/2022
Código do texto: T5760873
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