Quando Ela Fala

“At the immortal touch of thy hands my little heart loses its limits in joy and gives birth to utterance ineffable”.( Tagore, Gitanjali)

Passeio a custo, mas excepcionalmente, nas ocasiões em que percebo alguém semelhante em um traço a você, eu fito longamente, no entanto rapidamente observo ser falso meu enquadramento, digo em meu monólogo enfadonho ditos jocosos a mim mesmo ao me ver em contemplações tediosas, porque não são você; não usarias o cabelo assim, não estarias com tal vestido e etc. Entretanto, pode ser bem mais perigoso meu curioso estratagema, pois meu subterfúgio pode melindrar, sendo enganado pela minha própria imprecisão de memória, confusão de expressões ou o mais sofrível para mim, que estejas em minha mente como um indelével sonho, um adorável sonho em que não reconhecemos os personagens, fulgurando estranhamente uma soturna imagem, como uma sombra emoldurada em uma tela de Utrillo; é um ultraje suscitar isso, eu bem sei, porém penses comigo, vimo-nos uma única vez, talvez tenha sido eu o único a olhar, o que gera uma remembrança, pode haver confusão no que eu lembre de ti. Se fosse só isso, ao menos teria te esquecido, querida minha, mas não...

Outro dia, diferente do que sempre faço, busquei um ônibus que fazia um caminho maior, não estava com pressa, mas rendia ao cansaço bons apertos de mão! Um fim de tarde habitualmente cálido, onde as luzes ofuscam e criam estrelas dentro dos olhos, aquelas tardes úmidas, sob a tutela de um sol formosíssimo, cuja imagem no horizonte não corresponde mais ao objeto, mas delicia com sua beleza tanto o gênio quanto o transeunte qualquer. Pois bem, peguei o ônibus; furtivamente observei os passageiros e vi bastantes lugares vazios, de tal modo que sentei numa poltrona sozinho, onde próximo também não havia alma de cristão...

Compus em meu universo interior, na minha mente recheada de mirabolantes alegorias, preenchi meu pensamento com doidos castelos, lembrei de Sêneca e Rimbaud, de Pearl Buck e de Dostoiévski, e decidi, deliberadamente escrever um poema do cotidiano, sem contudo abandonar as cores vivas da erudição, do verdadeiro hipócrene borbulhante fui beber, e veio a tua imagem a minha memória.

Fatalidade, querida, fatalidade! Por que lembrar da cor dos teus olhos quando a cor do sol morde os meus? Os beijos de Hermes balançavam meus cabelos, será que os teus também, algures? Não sei, retorna o silencioso desconhecimento da tua alma, do lugar em que banhas teus sonhos, as botas com que caminhas tua esperança e o lenço de Deus, a esmiuçar as mínimas dores do teu cotidiano.

O empurra-empurra dos transeuntes e do trânsito em que estou, a exiguidade de raciocínios e ausência de sensibilidade desses seres humanos, imersos no cosmopolitismo devastador das horas enervadoras, do tropel cabalístico do medo e da insegurança, como uma algema comunitária e invisível, que além de dolorosa, é divisora! Sabes muito bem que é facilmente observável que inúmeros percalços da sociedade têm alicerces nessa intemperança e fraqueza de caráter que vivemos; parece bem provável, sabes disso muitas vezes, que das tribulações humanas, a falta de fraternidade é a mais conspícua das geratrizes! “Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua própria escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado”.

Curiosos são os ingênuos, às vezes eu penso assim, mas Marx teve um pronunciamento feliz, neste mundo quem somos se não atos diretos do que os outros pensaram sobre nós, de suas perspectivas e promessas de futuro em seus estereótipos e preconceitos? Daquelas pessoas que vi caminharem no horário do retorno, das horas cálidas do sol poente, em que as emanações não são literalmente vaporosas, mas são porções dessas! Os cérebros de todos nós estão inexoravelmente fechados às lógicas, às humanidades mais simples, é de se supor por isso o alastramento das doenças neurológicas. Como poderei almejar do homem, que contrariado respondeu minha cordial saudação vespertina, um coração ameno para sensibilizar-se com Bright Star, wouldst I steadfast as thou art ? De alguém de cenho que dificilmente a seus filhos e mulher serão afetuosamente recebidos, sobretudo com os questionamentos supra-estruturais feitos à revelia de romances ou paixões humanas, que mais certamente albergariam a morte do que a vida.

Não era um longo percurso, tampouco curto! Sabes bem dele, contornei os antigos monumentos da cidade velha, cujos pedregulhos simulam colinas de arquitetura enrugada, onde as pedras são mais lindas que as janelas; bem sabes desse percurso, dos cadenciados ferreiros, dos metais contorcidos pelo tempo, do tempo de revoluções grosseiras... a vilipendiar o canto das aves que fazem seus voos tranquilos no fim da tarde. O aspecto fosco e translúcido das casas, transbordando antiguidade e descaso, todavia com beleza e imponência, não obstante o antiquíssimo eflúvio que emana nas redondezas, uma característica mui temida, pois notadamente é uma premissa da catástrofe,, que bem sabemos, estão sucumbindo os palacetes e casarões antigos de nossa cidade.

Observei atentamente os sons pungentes de uma grande cidade e suas engrenagens típicas, do cosmopolitismo citadino, imerso na mecânica voraz, que tudo quer produzir e gerar e erigir e tornar maior, mas que também quer destruir, desprezar, perseguir e desumanizar. O, querida, o planger que rói nosso tísico coração, o resquício debilitado de nossa consciência humanitária é a contemplação dos sentinelas do opróbrio, lúgubres em seus desvarios coletivos, claudicantes e esvoaçados, enfaixados com as dúvidas que todos têm, publicamente dados ao bom Deus dos céus!

Rendo-lhes sempre minhas preces menos egoístas e, sinceramente sou como um Gorki romântico, um Trótski da benevolência e não raro, surpreendo-me com a vida e seus fantasmas. Seria nefasto lembrar-me das horas boas e pensar nelas todas como lindas, não; sabes, que da história dos seres humanos o mais importante é ser humano, porém na história as guerras e as calamidades relembram com precisão o sofrimento humano e do que presenciamos no mundo que caminhamos e bebemos seus compostos, é apenas gente, que somos, pedintes de profissão, como esses que vemos andrajos; somos todos pedintes de profissão, eu não diminuo os feitos e as façanhas de um Beremiz em tempos remotos, se é que existiu, no entanto, observo meu ser e aqueles que são meus amigos e irmãos e donde que posso julgar os vivos e os mortos? E que nesta vida uns são tão felizes e outros tão desgraçados, e se pudesse imaginar quem fosse possuir a beleza, que na prática, é a esperança de felicidade e nela alçar suas rédeas e passear tranquilo? De nada valeria, mas os nossos pais poderiam dizer: aqui te trouxemos para chorar, se alegrar, adoecer e sarar para tornar a adoecer, serás bonito e ficarás horrível também, mas o melhor de tudo é que poderás sofrer a vida, que só quem vive vida poderá dizer dela que preferiria a morte, o que não vale para o último.

O contorno da baía é, pois, como um giro dentro da algibeira de um ilusionista, mais parece que estamos dentro dos morros feitos de pedregulhos espessos e rochosos do que ao lado de um rio. Primeiramente não estava elucidado em minha mente, a possibilidade da audácia que estava prestes a fazer-lhe, mas gradativamente em meio ao platô e aos domínios que os poetas exercem sobre mim, quaisquer percalços que se apresentavam, esvaneciam como a bruma e os contemplava com serenidade e benevolência como se fossem canários esvoaçando. A viagem durou os instantes do ocaso e verifiquei bastante claramente o local, precisamente as regiões circunvizinhas, a proximidade das monotonias mundanas dessas horas, e as pessoas que olhava com singular simpatia, como se elas tivessem áureos serafins nos olhos; eu todo, surpreendentemente feliz.

Coloquei os pés nas ruas com a sabedoria e conhecimento que as artes humanas não saberiam expressar, caminhava com os pensamentos acertados, resoluto por te encontrar, de maneira temerária é bem verdade, contudo sincera e intrépida, inseri em sua casa, minha elucubração primeva, a primeira epifania poética que tu produziste em mim. Ademais, sabidamente não respondeste e desconheço as razões inerentes a esse fato, ou se existiram conjunções interpostas, principalmente o não acesso ou recebimento, já que com sua aquiescência ou simples conhecimento do que fiz, seria bastante provável que respondesse, peremptoriamente, aliás. Tendo em vista a avassaladora máquina existente em meu crânio, que de um modo único, escreveu o que te escrevi!

Não percas teus dias de beleza, pois comigo seriam dias de cintilações fulgurantes, repletos de construtivas efusões absolutamente originais, dotadas de suaves carinhos e dulcíssimas consolos, com as esplêndidas blandícias mais ternas sobre a terra, cogitando o irromper do álamo da perfeição, feito do trabalho humano e da dedicação do sonho de esperança e amor.

A recordação que tenho de ti é suave e de magníficos delineamentos, sutis como a fugacidade de uma poeira ao vento, contudo existente e perspicaz, geradora de edaz agonia e pensamentos criativos e auto replicativos, tão apreciável quanto a efervescência quântica de uma máquina em uma reação química, a massa crítica de um átomo de plutônio, em sua aterradora agitação molecular ictal, como o dilacerante estupor do magma do interior dos planetas, relembro assim...Relembro como se um composto e seus átomos fossem menos que Avogadro, dando beiras a estreitos.

Teus contornos de serpentes aladas, enrubescidos e inebriantes com um sorriso em meu rosto como o eflúvio tonsurante do almíscar do oriente, teu corpo de fênix, alforge como uma senóide que Gauss não inventaria, como um Φ a mais na história. Dirás de mim inescrupuloso, apesar disso tenho a tua demonstração matemática:

F(x)= 1+ sen(x)π/4

Nem acredito que consegui terminar essa função longe de ti, sem te ver, mas ai está! É uma senóide perfeita, construída dos teus alados contornos saltitantes, das ondulações de teu brio voluptuoso, da olímpica precisão que existe em ti, todavia ignota!

Num sonho, dormindo, acalentando a esperança... “to sleep, to dream..”, tive um êxtase profuso de vetustas harmonias, rodeado pelo áureo perfume preciosíssimo das quimeras azuis da noite, como um monge fascinado e enrubescido pelos versos dos cânticos dos cânticos; imergi, enamorado na penumbra ilusória do sono, nas nuanças das delicadezas de redemoinhos de vento ou nas santas emanações dos vapores celestiais, repleto das ternuras castas e com aquele ar senhoril e enigmático dos acólitos que nada entendem ou possuem nas encenações dominicais, mas caminhando com os turíbulos lactescentes criam-se-lhes ares indeterminados de superioridade e todos os olham com deferência. Penetrando as áreas do subconsciente, vendo já as plagas quebrando os balaústres da dúvida, pude junto aos vagos eflúvios subindo em siderações de neve, sentir os delírios de querubins etéreos...Vinhas contente, eu olhava visivelmente, sem anteparos, sem distanciamentos, sem índices refrativos, sem mesquinhos deveres, vi-lhe e ela eras tu, e sabes bem como são os sonhos, como delirantes e verdadeiros podem parecer, como excruciantes são seus rastros, torpedeando os invólucros restantes, e às vezes são aterradores os desfechos, às vezes que os fins são justamente o despertar, no meu caso são os piores, costumo experimentar enlevos inextricáveis vagueando de olhos fechados, vejo astros brilhantes com minhas pupilas dilatadas, encaro face a face os heroísmos mais homéricos!

Esperava sonhar contigo, experimentar essa minha criatividade em desvarios, mas sabes que não tive fisiologicamente o REM que almejei, contudo nem Stendhal comporia o que vi, de fato vi, observes bem que estou dizendo, meus olhos alcançaram os fogos-fátuos do universo e as fagulhas que fugiam de mim, de ti, enfim, apareceram! Vinhas para mim, abrindo os braços, toda a magnificência de tua elegante postura, teu corpo compondo a cena mais gigante do momento, cheios de enlevo e encarnação! Dominando os meus reflexos, para acompanhar a cinética dos teus passos, do ritualístico malabarismo da coreografia de um amplexo longamente apetecido, numa carícia lânguida e quebrada! Os fulgores que sinto são excelsos, altos, e avanço como um nefelibata aos esplendores, sinto alcançar siderações míticas, e observo a cadência dos teus passos rápidos...

Sabes, penso no tempo, retrospectivamente, penso na busca pelo poder dos nossos ancestrais e de hoje, tento lembrar dos impérios e das fortunas, busco os discursos mais antigos de toda a ciência do passado até à contemporânea lida que levamos, às vezes surdos aos nossos sentimento; penso nisso tudo, penso tão rapidamente, penso tão apaixonadamente que sinto minha alma tonta, como se alvoraçada, por um delírio, como quem buscou e encontrou algo além do que tinha para fazer da vida, como alguém que fascinado pelos sonhos, enfim pudesse dizer, a despeito dos outros que apenas isso importa: meu sonho! E a minha alma toda parece tremer a infinita certeza dos dias vindouros, que sim, estaremos aqui, e se não fizermos algo pelo amanhã, o amanhã vai existir sem o que queremos que nele exista! Sinto subir da essência de minha mente, a querela recôndita, a celeuma mais dormente que anseia o brado mais estridente, acima das galáxias, acima dos espaços, na matéria indecifrável da escuridão! E, contudo...E vens, enquanto eu, perplexo de espanto, mal acesso os regozijos mais gloriosos da humanidade, mal domino as minhas próprias forças pra te abraçar, tão leve está o rútilo de minha restabelecida fé!

Ah! E tens o seio tão bem acomodado em um apertado vestido, e mal posso gozar-te o encanto deles tão perto dos rendados do vestido e cintilante caminhas mais a mim; nas negras tranças do teu cabelo esparso, tão belas são as rosas desabrochadas do teu vestido! Nem um beijo sei te dar; atônito, pareço um insone como se dormisse um adorável sono de criança, porém meus olhos são lúcidos, tranquilos e vejo a formidável obra que me observa, apesar de reagir como uma estátua de mármore, pulsa todo meu corpo estrépitos escandalizados, e sei bem que poderias ter visto as faíscas em meus olhos, pois diante de ti, sinto-te, como se fora do corpo, rumores de festa na tua alma, vendo áureos colibris que cantam passando nos teus olhos!

Lembras que ia passando o luar, quando cheguei para colocar os versos à tua porta? Que solidão passeou em meus olhos quando da obscuridade da noitinha, logo naquele dia, de noite taciturna e fria, de nebulosos queixumes para preencher as aspirações dos corações românticos, de soturnas e aziagas vozes, de toda a indiferença dos outros, de toda a inexatidão que me despertou do meu desvario. Sabes, querida, estavas emocionado, e estendi minha sensação às coisas, ao passo que vi a completa incapacidade alheia de entender meus sentimentos, tudo isso soava como uma autorrepressão, um aniquilamento vagamente declarado, que restabelecia minha insignificância no universo! Como se com o dia fosse embora também minha ideias, cessando no espaço a límpida harmonia das minhas perspectivas claras!

Somente a noite, com sua exótica beleza, e justamente a noite com seus traços fascinantes, paradoxalmente me renovou. Vi as estrelas no céu, puras e raras, tão ignotas e pequenas na imensidão do espaço e tão incrivelmente poderosas e avassaladoras, alimentando quem sabe outras coisas com civilizações, com coisas como gente, sofrendo coisas como as nossas....E na mudez sombria da noite, aos poucos a vida ganha novos desafios e ao longe, parecendo perto- no firmamento- um clarão abre as ilhas de nuvens, e branca, nívea e doce, lento e lento, passos de adamantium, brilha alto a lua cheia, seu rutilante palor me ilumina e eu sorrio, satisfeito de existir na alegoria em que Deus encarna o artista.

Lembrei de uma batalha torpe que aconteceu nessas terras, tão boas para amar e fazer dos outros o bem e fazê-los alcançar a felicidade juntos, onde vemos a real motivação de nossa existência, senão essa: a de amar e ser amados! Nós todos!

Pois bem, veio me à mente, que deves ter acontecido quando da batalha de Stalingrado? É sabido que Gagárin não tinha dito sua frase, mas bem provável de perto de lá, os pássaros cochichassem à revelia de tiranos e fascistas, que festejassem os sabores das pérolas do néctar, e nem soubessem de nênias, de choros e réquiens tão próximo deles; e aposto que as formigas trabalhavam incólumes e que adoravam quando alguém dizia que o inverno seria terrível e 1944 foi o pior de todos! Pensei um pouco nisso e esses casos vieram à minha mente, e antes que penses que ironizo os mortos todos e seus descendentes, não agiria como insolente ou déspota, porém os casos humanos e seus sofrimentos são os mesmo hoje, e preferiria falar da revolução dos vegetais como Orwells do que dos saltimbancos, ou do putch de Monique, são apenas alegorias fantasmagóricas e tétricos desfechos, lembras que falei de desfechos? Não falo dos desfechos que ocorrem, precisamente por serem fins, mas das incertezas que são finais e tornam os desfechos terríveis, pois torna-se impossível perscrutar o fim, apesar de ser um fim. Que melancólico não saber a resposta das questões essenciais do homem, de quantos séculos são a sua história de centenas ou apenas alguns? Das sempiternas saudades das coisas indeterminadas, como grandes prazeres vividos em momentos singulares, ou as adoráveis recordações infantis, que às vezes mais parecem sonhos e invenções da imaginação que uma realidade que ficou em alguma parte do fio do tempo. E o que mais frustrante seria do que uma paixão agourada por inconclusões inexplicáveis? Quantas esperanças construídas pela beleza de uma paixão malograram por razões mais tolas que as brigas de irmãos pequenos ou menos sérias que chistos jocosos de personagens circenses? Por conta disso minha prédica ainda não saiu dos exórdios, e a ocasionalidade que me despertou a ti, saberás que vale algo!

Mas pensando ainda nos eventos daqueles dias fatídicos, é de se supor provável que algum deles contemplassem a lua, quem sabe se para confranger o coração das saudades de alguma bela mulher que sabiam não veriam novamente? Vá lá não fosse para pensar na vida que lhes escorria ou no tempo que não tinham nem para rezar o arrependimento de seus pecados? Mas será que nenhum deles ousou pestanejar o impossível de imaginar que tudo que viam, sentiam e passavam era, de fato, um fato real? Que experimentavam a vida descoberta de frívolas ameaças, mas patente como “ reconstruí-se-me sem ideal nem esperança” do Alberto de campos e sua “tabacaria”? cogito, ergo sum. Certamente não tiveram essas dúvidas, as alucinações de quem está prestes de morrer são bastante lúcidas, parece que a morte é o que mais nos traz vida, em si, conferindo mais um axioma paradoxal. A certeza de estar a passos do perigo, do infortúnio; nos remete, inevitavelmente às expectativas pela vida e seu iminente final. Improvável que lembrassem de H W. Longefellow, morituri salutamus, pois os hinos a vida que salmodiam a velhice são bons aos ouvidos de jovens inteligentes e sensíveis, mas mesmo os velhos não têm essa passividade em ver, ainda que belos e elegantes escritos, que lhes remetem à morte iminente e próxima. Seria mais fácil lembrar de Sebastian Brant, mundus vult decipi, e lhes importaria pouco o doce perfume dos canhões ou a pureza das balas que lhes esperavam na frieza de seus metálicos adereços e corações.

É bem possível que eu mesmo, contemplando as luzes da galáxia seja friamente um expectador tolo demais para entendê-las, não posso requerer isso de exércitos a beirar o colapso, de seus soldados meramente postos em frenesi com as sôfregas ânsias da vida em linha tênue. No entanto, compartilhamos de um aspecto, tudo isso se deu neste planeta girante, a 29 km/s, variando a 30 km/s, irrevogavelmente ao futuro, sem tempo para ver um pouco mais uma cena bonita que nos passa e desaparece para sempre. Onde estariam seus ideais, seus amores e é certo que amaram, eram homens; é certo também que queriam viver, pois a vida é tudo que sabemos e quanto a isso há uma equidade aterradora entre todos. “For in that sleep of death what dreams may come/When we have shuffled off this mortal coil”, essa dúvida do Nada lhes veio Quantas vezes à mente? Para mim, deveriam ter sido poucas. O que mais pensaríamos num momento desses seria justamente nos outros, nos vivos, em juras, prédicas, em quaisquer meios que nos afastem do fim definitivo, como se almejássemos um prolongamento em alguma promessa com os vivos e a própria vida que lhes existe e não mais naquele que parte?

Dissertar sobre o que consiste a morte é uma tarefa inglória e quase infinita, em seus delineamentos vis; portanto eximo-me a partir de aqui em concluir as hipóteses e suposições, que certamente comporia com tristes ironias e seria o que legaria aos fantasmas. Não obstante aparentar estranheza nas palavras anteriores, encaixam-se bem no meu estado de pensamento; no meu retorno cogitei a mesma intensidade de destruição dos exércitos à possibilidade do meu fado malogrado, de ser tudo mais uma irônica e sádica alegoria no universo, a exuberante composição dos meus versos, do meu sentimento, das inspirações cintilantes das plêiades homéricas que arrebentaram os brados da história de dentro do meu crânio, e tudo isso fatalmente, tudo dramaticamente ser parte da dissimulação do aniquilamento, ser tudo pobremente uma destruição, e tudo ser infelizmente de proporções bélicas, ser vergonhosamente para mim um desfecho doloroso; por que mesmo a mim, feito de sonhos e luz não há fronteiras dentro do espírito e é bom sabê-lo e não o sentir antecipadamente, pois dessa pequena trasladação de funções entre saber e sentir estão enorme quantidades de tristezas experimentadas pelo gênero humano.

Nas singelas oscilações da atmosfera daquela noite, sempiterna em seus poderosos e bonitos nuances, sentei à janela do automóvel à minha espera. Existem ínterins que caberiam civilizações inteiras, este foi um desses lastros temporais! Fiquei à janela e à janela observei as pessoas, que também somos. Observei ainda teus domínios, a mim, ignotos. Com a volúpia de um concupiscente que delicia-se em seu êxtase com o pudor alheio, rejubila-se de colher a descoberta de outrem; agi como um voyeur a observar seu lugar, o onde está, a porção do universo onde se assenta a leve pureza da nossa raça e descansa o teu sangue as horas duradouras. Retive-me e com os olhos, neste momento mandei aos céus minhas recusas e admoestações, que o brilho do olhos é uma faísca na escuridão, mas não é como Aristóteles supunha que fosse; com olhos, cujo luminescência poética não abrange sua importância fisiológica; com olhos, meus incrédulos, contemplei resignado apenas a matéria bruta e as rústicas construções, cuja arquitetura, com a ressalva de sua enorme função protetiva, já que as tempestades nunca são belas para quem vive nas ruas ao relento, tinha frustrado minha esperança de te ver, e com a dura verdade perante mim: Tu não me conheces e não te conheço, que fatalidade, amiga, que horrível fatalismo!

Too bad! Oh! Too bad! Pena de ser apenas parcial a paixão, pena de ser feito de neve, o alabastro puríssimo que ocorre em mim, pena mesmo não haver junto a mim teu cândido rosto, e as flores em teu regaço, as flores que dar-te-ia a todas as horas, contar-te-ia todos os bens e as falenas que dessem de embicar na tua pele, como fossem deuses e seus dados troçando dos humanos, em seus sinistros tabuleiros, enquanto regar as mandrágoras dos filhos de outras mulheres? Jamais far-te-ia torpe alegoria, seria uma fragrância leve, uma lady dos tempos ancestrais, sem espaço para criaturas agourentas ou apuros a espreitar teus vestidos, com ventos indiscretos e seus ruflarem em tardes divertidas, sem embaraços para tua tez violácea, só a lívida expressão da memória de lânguidas ocasiões futuras...Ah! as futurações! Ah! Pareceu-me ao partir, ver em tua casa como chaperonas e seus séquitos, ou os cálidos sicofantas a divertir na carroça de baco puxada por leopardos, sabes daquele povo afeito às glutonarias e as luxúrias vulgares e efêmeras? Àqueles que rodeiam teu âmbar no universo com as existências, cuja discrepância a tua, atinge a amplitude de uma apoteótica hecatombe! Esses indivíduos tornavam a noite enfadonha e lembrei versos, lembrei-me daqueles mais excelsos, que são como o albatroz indomável, ruflando assaz alto suas asas, no doido frêmito da liberdade, e como Castro Alves, alceei nela, em suas asas invisíveis, nas asas invisíveis da poesia...

Sem as cenas catastróficas do velho poeta dos escravos, não! Encontrar tua pálida fronte, repousando um sono musical e breve, com a sutil tranquilidade das valquírias e seus corcéis encantados, lindas, sim, assim como és linda! Mas elas tinham as cachoeiras que lhes davam flavos de ouro, tu, porém tens adoráveis tranças das negras águas do mar a cor, te eleva acima das antigas musas nipônicas, na suavíssima composição do pretume enternecedor que lhe deslizas pelos recôncavos de palor níveo, que têm êxtase ao contato de tua pele límpida e pura!

Sabes, sei que pensas que sou incompreensível, porque não me conheces, porém saberias e pensarias diferente se a mim me visse! Há bastante tempo sofro recôndito meus queixumes de ti, minhas celeumas ficam guardadas, porquanto a vida confrange nossos sentimentos e não raro é preciso esquecê-los, se não obstante, a minha tediosa e assaz vertiginosa conversa contigo, nesta confusão de palavras, sentires que te não mereço ouvir dizer da sua voz, do seu emparelhamento sináptico, da complexa engrenagem que te faria dizer o meu nome, soando como recompensa por todos os carbonos, oxigênios, hidrogênios, enxofres, fósforos e nitrogênios da matéria original de todos nós. Mesmo com todo meu discurso há em mim dores quase infantis, dores de proporções pueris, curadas com afáveis toques e gestos simples.

Ivo André Sousa
Enviado por Ivo André Sousa em 10/09/2016
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