A autonomia das almas
Zeus e Dione, quando geraram Afrodite e a entregaram ao universo com sua beleza corporal, esperando que ela colorisse a vida do próximo com seu amor, nem imaginavam que enfrentariam situações tão desafiadoras! A primeira delas, ainda na ilha de Chipre, foi dividir a criação grega com os romanos que se diziam, também, pais dessa criação. Para os romanos, a deusa da beleza corporal e do amor era Vênus, a filha de Urano. Ou seja, uma só criação que atende a uma só insígnia nas duas mitologias.
O casal, dada à incipiência da Filosofia e, numa atitude de contribuição para que a ciência tomasse corpo, aceitou dividir a criação, mesmo estranhando muito as explicações dos romanos de que Vênus teria nascido do sangue lançado impetuosamente dos testículos de Urano ao mar, e que, depois disso, as ondas e as espumas a teriam trazido até a areia.
As mitologias entraram num consenso, e gregos e romanos dividem, desde então, a mesma deusa sem maiores transtornos. Naquela época, a docilidade habitava os corpos e mantinha as almas menos intransigentes. No entanto, mudam-se os nomes da deusa, conforme a cultura que lhe dá sustentação, mas não se mudam as características atribuídas à entidade. Vênus ou Afrodite, independente do nome pelo qual atenda, é exuberantemente bonita fisicamente e de gênio forte.
Zeus e Dione, conhecendo a natureza da filha, resolvem ocupar um espaço confortável no Olimpo e de lá observar o que o destino reservara à deusa do amor e da beleza. Afinal, naquele tempo a organização familiar, assim como a conhecemos hoje, não existia. Nem as responsabilidades para com os filhos era uma determinação dada aos pais. Estavam movidos mesmo pela curiosidade. E é de lá do Olimpo, sentados num galho de macieira, que vão percebendo as aflições pelas quais a filha passa, quando já com os hormônios a trepidar em seus ovários, conhece Hefesto, o deus do fogo.
Afrodite e Hefesto casam-se e, o deus do fogo (que ironia!) não consegue dar conta sozinho dos desejos insaciáveis da esposa. Logo, simples homens mortais, além de outros tantos deuses, dentre eles, Anquises, a possuem. Coube aos pais apenas o desafio de assistir a tudo, sem direito de julgar ou participar, pois as decisões fluíam da alma de Afrodite.
De lá do Olimpo, Zeus e Dione contemplam a felicidade e a naturalidade com que as coisas acontecem no universo. Enche-lhes a alma de prazer assistir à felicidade da filha e a autonomia com que dirige a própria vida. Há quem diga que o registro desse comportamento voluntário de Zeus e de Dione, na Idade Média, tornou-se um marco e acabou por reforçar as ideias sobre a transferência da responsabilidade dos filhos para os pais e para a família. Daí, essa responsabilidade passar a existir como dever dos pais, com o renascimento das ideias.
Séculos se passaram e, graças à vida eterna das criaturas mitológicas, Zeus e Dione encontram-se novamente no Olimpo e resolvem descer para se relacionarem com os mortais, queriam saber a quantas andava a autonomia das almas terrestres na Pós- Modernidade. Afinal, eles eram exemplos de almas autônomas e haviam acompanhado de perto também, por anos ininterruptos, a autonomia da alma da filha, podendo testemunhar a existência dessa autonomia, pelo menos até a geração da filha, Afrodite.
Para surpresa de Zeus e Dione, eis que se deparam com teorias e mais teorias, livros e debates acirrados sobre Ética e Bioética, definindo conceitos, descrevendo comportamentos devidos e dando orientações à sociedade na busca da valorização do respeito à pessoa. Assustam-se com as discussões em pauta, entendem-nas como um retrocesso ao longo do tempo; encantam-se com a evolução tecnológica que deveria favorecer a conquista de um mundo cada vez melhor, mais autônomo e inclusivo, no entanto não é isso que constatam. E não conseguem entender por que essas discussões em pauta e, não outras tantas, de que, provavelmente, o mundo contemporâneo estivesse mais necessitado!
Zeus e Dione sentem-se incapazes de compreender por que os mortais têm dificuldades em entender e respeitar as pessoas como elas são; com seus desejos e vontades próprias. Afrodite pôde dar vazão à sua sexualidade, aos seus hormônios sem ser criticada pela sociedade de outrora, sem ser questionada. Será que os pós-modernos podem atender aos seus desejos e instintos atávicos sem serem incomodados pela curiosidade ou maldade alheias? - questiona o casal.
Zeus e Dione retiram-se de volta ao Olimpo de onde, talvez, nem devessem ter saído. Não ter conhecimento de algumas realidades, às vezes, é uma forma de evitar as angústias! Talvez essa tenha sido a situação mais desafiadora para eles: admitir que a sociedade contemporânea conta com avanços científicos e tecnológicos sem precedentes, no entanto se mostra retrógrada, em relação à sociedade vivida por eles na Era Clássica, em que as pessoas podiam demonstrar sentimentos uns aos outros, sem correr o risco de serem discriminados.
O Olimpo recebeu de volta um casal com almas angustiadas. É comum e frequente vê-los, refletindo sobre essa angústia e desejando que ela não se dissemine por lá como a discriminação e o preconceito se alastraram por aqui. Afinal, respeitar as pessoas como elas verdadeiramente são é um exercício que deve ser praticado sempre que se quer alcançar a autonomia das almas que se dizem humanas, ponderam eles.