PLANTÃO

Mais uma noite de inferno! Subia pela escada, demorando bastante em cada degrau. Era a sua décima semana na UTI da Clínica Médica que tinha a mesma idade. A cada plantão pensava na grande cagada que fizera. Estudava o dia inteiro, precisava dormir à noite. Não deveria trabalhar nesse tipo de setor. Mas não aguentava mais a Filomena no seu pé. Já trabalhavam juntos há três anos na Enfermaria de Clínica Médica Masculina e ela continuava vigiando tudo o que ele fazia e chateando-o como se tivesse chegado ontem. Se fosse sua chefe, vá lá. Mas era auxiliar de enfermagem como ele! Só que seus 30 anos de casa (e um serviço impecável) lhe permitiam dizer o que quisesse e aporrinhar quem bem entendesse. Nem a enfermeira se colocava na frente dela.

Segundo andar, só falta mais um. Quando pensa que pediu para ir para o novo setor só para fugir dela. Para não dar bandeira disse que queria aprender coisas novas, que ia ser bom para o seu currículo. Só o supervisor caiu nessa, se caiu. Todo mundo sabia que o que ele queria era fugir da mocreia. A desgraçada viva falando que era velha demais para uma unidade intensiva, que não aguentava ficar escutando o barulho constante dos respiradores e bombas de infusão, que isso e aquilo. Trabalharia que nem um condenado, mas seria livre. Mas a filha da puta! A FILHA DA PUTA! Na semana da inauguração pediu para ser transferida para lá! Era inacreditável! Ficou completamente estarrecido. E não havia jeito de voltar atrás. No seu último plantão na enfermaria, folga dela, seus colegas riram à larga. Diziam que era um caso de amor.

Finalmente chegou. Suspirou fundo e entrou no setor. Ainda deu tempo de pegar a passagem de plantão do Seu Gennaro. Pobre coitado, um carcamano de 2 metros de altura, turrão e chato até a tampa. Tinha uma rara doença que afetava os nervos do corpo inteiro, lhe tirando a força dos músculos. Adorava o cara. E o desgraçado sabia! Cada vez que passava na porta ouvia o "tchu-tchu-tchu" que ele fazia com a boca para chamá-lo. Igual cavalo! Sobe cabeceira, desce cabeceira, põe de lado, põe de outro, dá água, puxa para cima na cama. Era o único que tinha força e paciência para cuidar dele. E ele aproveitava! Mas isso o desgastava apenas fisicamente. Os dias que ele dava mais trabalho pareciam ser os que saía com a alma mais leve. Quando o pobre coitado teve que ir para uma cirurgia de urgência, com infecção generalizada, ficou com o coração na mão. Não entendia porque cargas d'água o esterno dele conseguiu apodrecer inteiro em menos de 48 horas. Havia retornado para a UTI havia três semanas e ele se oferecia sempre para ficar responsável por ele. Como era um serviço pesado ninguém chiava. Assim conseguia ficar um tempão longe da colega. E da Raquel também, por mais que não admitisse isso nem para si mesmo. Mas hoje não ia ter como. Só em três para quatro pacientes, com a enfermeira da Clínica cobrindo o setor e a enfermaria. E além da sua Nêmesis, só a tonta da Joana. Para melhorar ocorreram dois óbitos durante o dia e duas admissões, então os quatro banhos ficaram para a noite. Seria o cão chupando manga e arrotando!

Não teve dúvida. Foi correndo preparar o material de banho e curativo do Seu Gennaro. Enquanto arrumava as coisas ficou pensando em como aquela relação era doentia. Precisava fazer alguma coisa. Bem, pensaria nisso depois. Agora havia um serviço importante para fazer. Devido ao tórax dele estar coberto apenas por um curativo, ficava em um quarto isolado e tudo que entrava em contato com ele tinha que estar estéril. Preparou as coisas, colocou o avental, gorro, máscara, óculos, tudo em menos de dez minutos. Agora viria o trabalho pesado! Arrancar a fralda e as roupas de cama sujas com luva estéril, tirar a luva, molhar o corpo dele inteiro com soro fisiológico, colocar luva estéril, passar um pano com sabão e polvedine (anti-séptico), lavar de novo com soro, tirar a luva, molhar o corpo dele inteiro de novo, colocar as luvas, secar com outra compressa estéril. E depois fazer todo esse processo de novo para limpar as costas, sozinho. Terminando isso colocar um lençol novo e uma nova fralda. E depois tirar o avental estéril para vestir outro, para poder fazer o curativo. Aqui fazia uma pausa quase religiosa. Retirava bem lentamente o antigo, deixando revelar aquele enorme buraco onde se podia ver os pulmões se mexendo, o coração pulsando, tudo protegido por uma pelinha tão fina que parecia celofane. Podia-se ver os dois pulmões, o coração, a aorta superior se dilatando a cada batimento cardíaco. Lavava tudo com o soro em jato bem de leve e depois com pinça e gaze, secava bem devagar, com todo o cuidado do mundo, pedacinho por pedacinho, sobre aquele véu tão frágil, as estruturas do interior do peito se mexendo, cada movimento podendo furar aquela película fininha e ele morrer de asfixia. Depois passar o óleo especial para o curativo não grudar e aí colocá-lo com todo o cuidado. Fixar tudo bem forte, mas com jeito. Sempre fazia uma oração antes de começar e outra quando terminava, agradecendo não ter acontecido nenhuma cagada. Quando estava de serviço sempre pedia para fazer, e ninguém reclamava disso. Há dois meses já. Mas mesmo assim sempre sentia uma enorme vertigem quando acabava. Todo o processo demorou duas horas. Logo que terminou desceu para jantar.

Aquilo o fazia se sentir vivo. Devia ser a mesma sensação de andar na corda bamba. Assim que chegou da janta a Filomena já a estava esperando de braços cruzados e batendo o pé:

-Até que enfim,hein! Nós duas tivemos que dar banho sozinhas nas pacientes novas e tirar toda a medicação! Agora nós vamos jantar e você dá banho na Raquel.

Saíram correndo, não lhe dando chance de falar nada. Durante pelo menos um minuto ficou parado, sem atinar por onde começar. Só neste momento viu o tamanho das duas novas pacientes. Eram enormes! E os lençóis que elas tinham enrolado nos braços delas já estavam molhados com os líquidos que elas transpiravam. Nos monitores as pressões arteriais baixinhas, baixinhas. Mas elas não o assustavam. Deus que o perdoasse, mas já eram idosas, estavam sedadas até o talo, cheias de problemas e com o prognóstico fechado. Requeriam cuidado, mas nada urgente.

O problema era a Raquel. Ela estava consciente. E diferente de todos os pacientes que já cuidara, era linda. Vinte quatro anos, pele clara, cabelos e olhos castanhos. Pequenininha, frágil, inteligente. Sofria de um um tipo raro de fibrose cística que estava transformando rapidamente seus pulmões em pedra ou algo assim. Não podia fazer nenhum tipo de esforço. Desde que chegou, no primeiro dia de funcionamento do setor, fugia dela a todo custo. Mas era impossível fazer isso o tempo inteiro. Mesmo doente ela era de uma perspicácia impressionante. E de uma faceirice. Percebeu logo que ele a evitava e então o chamava para tudo e o provocava o tempo todo. Todas as suas colegas lhe faziam festa, mas ela insistia em puxar assunto com ele. Mesmo sempre tentando fugir, houve momentos, principalmente de madrugada, com metade dos colegas dormindo, em que ele esquecia seu medo. Eles tinham longas conversas. Ele brincava, ela sorria, e o tempo parecia parar. Todos os pacientes, monitores e funcionários entravam em acordo, ficando no mais absoluto silêncio. Mas quando retornavam parecia uma aterrissagem forçada. O receio voltava quase como um pavor, como se tivesse sido pego em uma falta grave. Agia como um seminarista em frente a uma prostituta. Quase todo dia, pensava nela. Nas aulas, em casa, antes de dormir. Tentava desviar os pensamentos, mas a lembrança dela sempre voltava:

-Então, alguém não têm que trabalhar, não?

Ela sorria, visivelmente se divertindo com o seu embaraço:

-E nem vem com a historinha que está sozinho. Isso aqui foi um agito só o dia inteiro, ninguém se lembrou de mim. Vou querer serviço completo!

Sentiu o rosto enrubescer. A sacana sabe que eu fico todo sem jeito e está tirando uma com a minha cara de novo. A raiva fez a vergonha passar. Preparou o material de banho. Primeiro lavou seus cabelos com água morna e shampoo. Enrolou-os depois em uma toalha para secar:

-Não reclama não, eu sei que a touca não ficou lá essas coisas. As meninas arrumam quando chegarem.

-Não estou falando nada.

Assim continuou todo o procedimento, tentando travar uma conversa mole e com seu pau dolorosamente duro. Mantinha-se curvado e dava graças à Deus pelo avental de UTI ser largo. Mas percebia que a toda hora ela olhava de canto de olho para sua virilha. Parecia estar se divertindo a beça. Lavou e secou seu rosto, cada contorno, com cuidado. Ergueu a toalha em frente e deixou que ela lavasse seus seios e os secasse, enquanto isso ficou olhando para o monitor cardíaco ao lado da cama:

-Não seja tão puritano, não precisa olhar o tempo todo para o monitor. Se eu descompensar, ele avisa.

-Você quer me arranjar um processo,né?.

Teve que tirar os sensores antigos para colocar os novos em seu peito para poder monitorá-la. Meu Deus, como os seios dela eram maravilhosos! Firmes, nem grandes ou pequenos demais, auréolas claras e rígidas. Resistiu à tentação de continuar olhando para eles e cobriu seu tórax rapidamente. Mas seu dedo, quase como se tivesse vontade própria, passou pelo mamilo esquerdo levemente. Lavou e secou seu abdômen e, com autorização e rapidamente, seus genitais. Cada uma das suas pernas, suas costas e suas nádegas, ao mesmo tempo que trocava a roupa de cama molhada. Amarrou o novo lençol nas duas pontas do colchão e ajudou-a a vestir a camisola do hospital. Com tudo terminado, olharam-se nos olhos. Todo o encanto do mundo parecia estar naquele olhar. Percebeu ali o quanto estava apaixonado. E para sua enorme surpresa, que era correspondido. Este momento não deve ter durado mais do que alguns segundos, mas a eternidade caberia nele. Era como se estivesse no paraíso.

De repente ela começou a arquejar, como alguém que se sufoca. Suas colegas tiraram ele rapidamente de perto e mandaram que chamasse o médico, que estava atendendo na enfermaria. Nunca soube há quanto tempo estavam ali. Mesmo a Filomena nunca comentou nada. Tentaram entubá-la, em vão. Depois que finalmente ela foi a óbito, pediu para dar uma saída e chorou por pelo menos uns quinze minutos no banheiro. Passou o resto do plantão, junto com as demais, no mais absoluto silêncio. Nunca ninguém o culpou, a não ser ele mesmo...

Aristoteles da Silva
Enviado por Aristoteles da Silva em 08/09/2016
Reeditado em 10/09/2024
Código do texto: T5754519
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