O Agnóstico

2016

Eu havia acabado de chegar na “Travessa” do Barrashopping, enquanto folheava o novo livro de Terry Eagleton, A Morte de Deus na Cultura, senti aquela sensação de estar sendo observado. E estava.

Percebi vagamente que alguém se aproximava de mim, olhando para o livro em minhas mãos.

Tratava-se de um homem de média estatura, talvez um pouco mais de um metro e setenta. Cabelos curtos, barba suave, ambos grisalhos. Magro. Não passava de 70 anos. Embora não muito elegante, parecia ser simpático.

— Boa tarde! Como vai cavalheiro? Chamo-me Carlos André, peço desculpas se o incomodo — disse, com um meio sorriso, o desconhecido que estava chegando ao meu lado.

— A critica está elogiando muito esse novo livro de Eagleton. Conhece o autor? — ele perguntou.

— Boa tarde! Meu nome é Luiz Marcelo. Ainda não li “Terry Eagleton”, apesar de interessar-me por filosofia. Conheço-o de alguns artigos divulgados na internet. — respondi.

— Não pense mal de mim. Desejo apenas sugerir o livro. Segundo a crítica, o autor faz uma excelente reflexão sobre as capacidades únicas das religiões. — disse Carlos.

— Você gostou? — perguntei

— Não li. Há um ano deixei de comprar livros — respondeu Carlos André.

E ali iniciamos uma conversa descontraída sobre literatura e filosofia que não durou mais do que dez ou quinze minutos.

Agradeci a dica, nos despedimos. Eu permaneci um pouco mais na livraria, pretendia olhar outros títulos. O recém-conhecido seguiu em direção à porta de saída.

2020

Era uma tarde de sábado, de um inverno de pouco frio no Rio, muitas pessoas preferiram ficar em casa assistindo na tevê as atrações da Olimpíada de Tóquio, mas eu, como de costume, estava na livraria Travessa.

Lembrei-me dos Jogos Rio 2016 e do meu amigo Carlos André. Fazia quatro anos que havíamos nos conhecidos, foi também numa tarde de sábado aqui nesta livraria. O Rio estava em festa, realizava a primeira Olimpíada da América do Sul.

Ainda tenho na memória o modo gentil com que ele recomendou-me o livro do Terry Eagleton.

Parado, em pé, junto à mesa, que em muitas tardes de sábado, sentávamos para discutir literatura, senti saudades das conversas e dos bons momentos com Carlos.

Tenho boas recordações. Foi uma amizade curta, porém bastante sincera. Em todos os nossos encontros, ocorridos ao longo de quase um ano, o meu amigo consultou diversos livros, mas não o vi comprar um se quer, para ele.

2016

A nossa amizade

Durante a semana que se seguiu ao nosso primeiro encontro, com certa frequência, vinha-me ao pensamento a imagem de Carlos, o seu modo tranquilo e educado com que me abordou. De certo modo gostei da franqueza de sua resposta em dizer que não tinha lido a Morte de Deus na Cultura. Fiquei curioso com a declaração de que, apesar de frequentar livrarias, não mais comprava livros.

No sábado seguinte, cheguei um pouco mais cedo à Travessa e, evitando chamar atenção das pessoas, tentei encontrar aquele novo colega de leitura. Depois de alguns minutos, avistei-o sentado à mesa, próximo da estante de obras estrangeiras, lendo uma revista especializada em literatura.

Naquela tarde, eu o abordei e iniciei a conversa.

Aproximei-me do local onde ele se encontrava e, falando baixo e com um leve sorriso no rosto, disse:

— Queira desculpar, cavalheiro. Não pense mal de mim. Gostaria apenas de perguntar se lembra da nossa conversa no sábado passado.

— Olá, boa tarde, lembro-me de você, mas esqueci o seu nome — Carlos, levantando-se da cadeira, respondeu.

— Boa Tarde, meu nome é Luiz Marcelo — eu falei, estendendo a mão para cumprimentá-lo.

A partir daquele segundo encontro, tornamo-nos inicialmente colegas de leitura e depois amigos.

Seguindo o mesmo modelo do nosso primeiro papo, passamos a nos encontrar, quase que rotineiramente, nas tardes de sábado na mesma livraria. Gostávamos da mesa próxima às obras estrangeiras. Sempre que possível lá sentávamos e conversávamos sobre literatura, filosofia, escritores e, algumas vezes, sobre a finitude da vida.

Carlos falava muito pouco sobre a sua vida profissional e familiar. Falava sim, e muito, dos seus escritores preferidos.

Certa vez, logo no início da nossa amizade, quando conversávamos, ele fugiu do assunto e perguntou-me qual tinha sido a minha motivação para gostar de obras relacionadas à filosofia. Foi, talvez, a única ocasião que o assunto foi direcionado às nossas vidas privadas.

Naquele dia soube que ele tinha 67 anos, sete a mais do que eu. Era engenheiro mecânico, mas apesar da formação técnica, desde jovem adorava literatura. Tinha preferência pelos escritores russos e britânicos. Quando aposentado passou a dedicar-se intensamente aos livros. Era casado, tinha dois filhos e uma neta. Também morava na Barra da Tijuca. Éramos quase vizinhos, mas não chegamos a frequentar a casa um do outro. Nossas famílias não se conheceram.

Eu, naquela mesma oportunidade, respondendo às perguntas do amigo, comentei a minha passagem pelo Seminário São José no centro do Rio de Janeiro, onde, por quase dois anos, havia sido seminarista. Respondi que a minha dedicação aos livros e à filosofia fazia parte da minha vida profissional, pois depois de abandonar a formação sacerdotal, tinha concluído a graduação em filosofia e literatura. Tinha lecionado na PUC por trinta anos e que ainda continuava trabalhando na Universidade Católica, mas não em sala de aula.

Ele sorriu e disse que era uma coincidência interessante, quando lhe falei que também era casado, pai de dois filhos e tinha uma netinha de três anos.

Alguns trechos das nossas conversas

Não havia nada combinado, tampouco compromisso com relação à obrigatoriedade do comparecimento aos encontros. Jamais elegemos um tema para ser estudado e discutido na semana seguinte.

A cada sábado, a nossa conversa fluía naturalmente.

Na maioria das vezes, quando eu chegava Carlos já estava na livraria. Encontrava-o lendo os comentários da obra e os dados biográficos do autor contidos nas abas (orelhas) de livros por ele pré–selecionados.

Depois de nos cumprimentarmos e falarmos sobre acontecimentos da semana, ficávamos um bom tempo sem dizer nada um para o outro, às vezes sentados outras em pé junto às estantes. Cada um buscando atender suas curiosidades sobre as obras recém-lançadas.

Espontaneamente surgia um tema e conversávamos.

Escritores Russos

Na opinião de Carlos a literatura russa era rica em qualidade, por abordar os temas de forma profunda, levando o leitor à reflexão.

Enquanto eu falava dos clássicos: Guerra e Paz e Crime e Castigo, ele discorria sobre diversos trechos e personagens de obras não muito conhecidas ou comentadas aqui no Brasil. Não esqueci os seguintes comentários:

Felicidade Conjugal, de Liev Tolstói. Segundo o meu amigo, um dos textos mais lindos desse autor está nessa obra. Ele conseguiu simplesmente a “perfeição” em transmitir aos leitores a emoção de seus personagens.

Gente Pobre, de Fiódor Dostoiévski. Carlos sabia quase de cor o trecho da página 136, no qual o autor descreve o menino pobre e o pedido de esmola. O texto é praticamente eterno, Carlos destacou. Escrito na primeira metade do século XIX, serve para descrever uma cena de uma criança pedindo esmola nos dias de hoje no Rio.

— Marcelo, você leu A Morte de Ivan Ilitch — Perguntou-me Carlos.

— Não, mas depois dessa nossa conversa pretendo ler. Por que? — perguntei.

— Gostaria de ouvir a sua opinião não só sobre o romance, mas principalmente a respeito do tema escolhido por Tolstói. — Disse Carlos.

A Finitude da Vida

— Carlos, desde jovem, quando na faculdade estudei Epicuro, eu compreendi os argumentos que ele formulava para suavizar a angústia da morte. Então, passei a aceitar a finitude da vida com certa naturalidade — respondi ao questionamento do meu amigo.

— Epicuro acreditava e transmitia aos seus pares que o propósito maior da filosofia é aliviar o sofrimento humano, o qual ele não tinha a menor dúvida era causado pelo nosso medo onipresente da morte. — Complementei a minha resposta.

— Você poderia comentar esses argumentos? — Carlos, mostrando bastante interesse no assunto, perguntou-me.

— Claro. Comentarei os principais, recordando-me do texto utilizado por Irvin Yalon no seu livro De frente para o sol.

A mortalidade da alma: Epicuro ensinava que a alma é mortal e perece com o corpo. Logo, se somos mortais e a alma não sobrevive, não devemos ter nada a temer quanto a uma vida após a morte. Não teremos consciência. Cabe ressaltar que o filósofo jamais negou a existência dos deuses.

O supremo nada da morte: Neste argumento, o pensador postula que a morte não é nada para nós, porque a alma é mortal e desaparece com ela. Ou seja, onde eu estou, a morte não está; onde a morte está, eu não estou. Então, por que temer a morte se nunca podemos percebê-la.

O exemplo da simetria: É sustentado pelo pensador que o nosso estado de não ser após a morte é o mesmo no qual nos encontrávamos antes do nascimento. Em outras palavras, depois da morte seremos o que éramos antes de nascer: “nada”.

Ao final da explanação, perguntei ao meu amigo:

— Qual é o seu entendimento sobre a discussão da mortalidade versus imortalidade da alma?

— Acredito na mortalidade da alma. — Carlos, quase que imediatamente, respondeu.

— Eu também aceito que a alma perece com o corpo. Acreditar na mortalidade da alma é acreditar na bondade de Deus. Deus não desejaria nos ver sofrendo após a morte — expus a minha opinião.

— Carlos, e sobre finitude da vida, o que você pensa?

— Não tenho receio da morte. Quando penso nesse assunto, sinto aflição com relação à interrupção no ato de viver — ele respondeu.

— Não mais apreciar a natureza; não mais receber o carinho da esposa, dos filhos e dos netos. Não mais ler os livros que estão selecionados na estante — Carlos complementou a resposta.

— A sua resposta fez-me lembrar de um romance de John Boyne, O Ladrão do Tempo, em que o personagem principal, um menino, chega à idade adulta e para de envelhecer. Não há interrupção no ato de viver. É uma ficção muito interessante — comentei.

— Se não me falha a memória, John Boyne é inglês. — eu disse.

— Não! — Respondeu Carlos — ele é irlandês.

Escritores Britânicos

Depois de algumas tardes conversando com o meu amigo de leitura, percebi que ele, mesmo não vivendo profissionalmente dos livros como eu, possuía, de um modo geral, um bom conhecimento de literatura.

Eu gostava de ouvir os comentários de Carlos sobre os autores de língua inglesa.

Ele iniciou a conversa com o romance O Sentido de um Fim, de Julian Barnes, vencedor do “Booker Prize 2011”, no qual ele considerava magnífica a reflexão elaborada pelo autor sobre o envelhecimento, a memória e o remorso de atitudes tomadas e não tomadas ao longo da vida.

Depois discorreu sobre alguns de seus escritores favoritos, recordando trechos de suas obras. Lembro-me dele ter mencionado os seguintes autores da atualidade: Ian MacEwan; Martin Amis; Tom Rob Smith; Orlando Figes; S.J.Watson. Dos consagrados, conhecia praticamente quase todos.

Na opinião dele, os melhores contos eram os de autores britânicos e como referência citou Charles Dickens. Depois vinham os de escritores russos, tendo destacado Liev Tolstói que ficou mundialmente conhecido por seus romances, mas que também publicou contos maravilhosos.

— Conheço as principais obras e li alguns livros de Dickens. Gostei muito de Um Conto de Duas Cidades. Mas não tive ainda oportunidade de ler um conto de Tolstói. Qual você recomendaria? — Perguntei.

Carlos pensou! Em seguida, levantou–se e disse:

— Volto já, Marcelo.

Cinco ou dez minutos depois, ele retornou à nossa mesa de papo, entregou-me um pequeno pacote da Travessa e disse:

— Marcelo, eu recomendo esses contos russos.

Ele havia comprado e me oferecido dois livros de Liev: Padre Sérgio e O Diabo e Outras Histórias.

Aquele gesto simples, mas verdadeiro, emocionou-me. Ele não comprava para si, mas presenteou-me com dois livros. A minha “tese imaginária” de que ele, aposentado, vivia com alguma dificuldade financeira acabava de perder a validade.

A Existência de Deus

Alguns sábados depois, não em tom de cobrança, mas Carlos perguntou-me se já havia lido Padre Sérgio.

— Sim, li praticamente sem parar as cem páginas. Realmente uma narrativa que poucos conseguiriam redigir. Gostei muito. — Respondi.

—Você leu a carta publicada no final do livro que Liev escreveu em resposta à resolução do Sínodo quando foi excomungado da Igreja Ortodoxa Russa — perguntou-me Carlos.

Quando eu ia começar a responder, o meu amigo interveio dizendo:

— Claro que você sabe, mas apenas para lembrar: Liev em momento algum na vida afirmou, ou deu a entender em seus textos criticando as práticas religiosas de sua época, que não acreditava na existência de Deus. — Carlos fez questão de ressaltar.

— Li a carta e também gostei do modo que Liev apresenta seus argumentos — respondi ao meu amigo.

Em seguida perguntei:

— Carlos, você já expôs que acredita na mortalidade da alma. E o que pensa sobre a existência de Deus? — indaguei.

— Como você mesmo sabe, este assunto convive com o homem desde que nos tornamos seres pensantes. Foi e sempre será um dos temas bastante discutidos nas sociedades. Há muitos argumentos filosóficos escritos e divulgados. Acredito, como a maioria das pessoas, na ciência e, talvez como uma minoria, na existência de Deus agnosticamente teísta. — Carlos respondeu.

— Mas acho que estou perto de encontrar os “meus argumentos” que validarão a existência divina. — ele concluiu.

O fim dos encontros

Aconteceu em junho de 2017, cheguei à livraria e, diferente das outras vezes, não avistei Carlos no local costumeiro dos nossos encontros. Naquele instante, pensei que o meu amigo estivesse atrasado.

Fui conversar com um dos vendedores, já meu conhecido, sobre o que havia disponível de Cristovão Tezza, eu estava interessado em A máquina de caminhar, lançado em 2016 com uma seleção das crônicas que o autor havia publicado no jornal paranaense Gazeta do Povo.

O tempo passou e o meu amigo não apareceu. Em quase um ano, era a primeira vez que Carlos não comparecia.

Ao anoitecer voltei para casa sem dar muita importância ao fato, considerei natural. Talvez uma indisposição ou um outro compromisso qualquer com a família.

Seguindo a vida, continuei visitando a livraria, mas durante todo o mês de junho não encontrei o meu amigo. O que teria acontecido com Carlos? Eu me perguntava.

Sabia que ele morava na Barra, mas onde? Pouquíssimas vezes conversamos sobre o que fazíamos no dia a dia. Eu não havia lhe dado o meu endereço, telefone, e-mails, nada. E nada também tinha recebido dele. Nas nossas conversas não tratávamos do mundo real, só das ficções dos romances e dos contos.

Pesquisei no Google, não encontrei nada relacionado ao nome Carlos André que me permitisse localizá-lo.

Em agosto, acho que numa terça ou quarta-feira, eu havia chegado cedo da PUC, estava conversando com a minha esposa na sala de casa. Ao olhar para estante, deparei-me com o exemplar de Padre Sérgio.

Levantei e fui pegá-lo. Reli, na segunda página, a simples dedicatória. E pela primeira vez reparei que os algarismos, abaixo da rubrica de Carlos, não significavam a data, mas sim um número de telefone fixo.

Liguei.

— Alô, por favor, gostaria de falar com Carlos — disse, para pessoa que havia atendido. Era uma voz feminina.

— Quem gostaria de falar com ele? — respondeu-me uma mulher que, pela entonação da voz, demonstrava surpresa e certo espanto.

— Aqui é Marcelo, sou amigo de Carlos.

— Você é um colega de trabalho? — perguntou a mulher.

— Não somos colegas. Conhecemo-nos aqui na Barra e nos tornamos amigos. Ele pode atender? — Perguntei.

Após quase um minuto de silêncio.

— Eu sou a esposa dele, ou melhor, a viúva. Há um mês Carlos nos deixou — a esposa falou com uma voz triste e serena.

— Não é possível! O que aconteceu? — Indaguei.

— Ele não se despediu de ninguém. Faleceu durante uma noite de sábado para domingo. Eu estava ao seu lado na cama e nada percebi. Ao amanhecer estranhei o meu marido ainda deitado. Ele sempre levantava antes de mim.

— Desculpe, qual é mesmo o seu nome? — ela perguntou.

— Marcelo, respondi com tristeza na voz. Ainda não estava acreditando que meu amigo havia morrido.

— A senhora poderia me dizer o que houve. Foi uma morte súbita? Ele enfartou?

— Sim, Marcelo. Uma morte súbita causada por embolia pulmonar. Mas de certo modo esperada. Há cerca de um ano Carlos havia sido diagnosticado com um câncer no pulmão. Vinha realizando tratamento, mas ele sabia que a sua expectativa de vida era curta. Os médicos falavam em não mais do que dois ou três anos.

— Você é o Marcelo que o meu marido conversa aos sábados na livraria? — Sim, sou eu mesmo.

— Nos últimos meses, a doença o deixou bastante debilitado. Ficava praticamente o dia inteiro na nossa sala de leitura com seus livros e cadernos de anotações. Ele conversou comigo sobre como havia lhe conhecido. Comentou que estava aguardando uma ligação, pois tinha um assunto para lhe falar — disse a viúva de Carlos, mantendo todo o tempo a voz tranquila.

— O meu marido falava muito de você. Inclusive, encontrei em suas anotações recentes, o que imagino ser um rascunho de um e-mail que lhe enviou ou enviaria. Se desejar Marcelo, posso lê-lo — ela propôs.

— Não recebi nenhuma comunicação, Carlos não tinha o meu endereço eletrônico. Por favor, leia. — eu disse

— Então, aguarde um momento — ela respondeu.

No instante seguinte, comecei a ouvir:

“Caro amigo Marcelo,

Por motivo de saúde, não mais tenho saído de casa. Sinto falta das nossas conversas sobre filosofia e literatura. Tive a oportunidade de muito aprender com seus argumentos.

Percebi a sua firmeza nos assuntos que envolviam a razão e a fé logo no início dos nossos encontros. Talvez por ter sido seminarista e continuado profissionalmente ligado aos temas filosóficos tenhas encontrado o seu ponto de equilíbrio.

Em um dos nossos últimos papos, falamos sobre a imortalidade da alma e a existência de Deus. Talvez os dois temas mais discutidos por certos homens e também os mais evitados por outros.

Nunca discordei que a religião e a fé eram questões de convicção íntima, e não possíveis de demonstrações racionais. Naquela ocasião disse que estava perto de encontrar a minha verdade sobre o assunto.

Hoje tenho certeza que a encontrei. Acredito numa força poderosa, autogerada e autodeterminada, que antes a chamava de Razão, e agora de Deus.

Não mais me sinto aflito com a interrupção da vida, não quero ser “um ladrão do tempo”. Não me importo se conseguirei ou não ler todos os livros da minha estante. Voltei a comprá-los.

Estou tranquilo e feliz.

E feliz e tranquilo, como todos nós, vou-me aproximando da morte.

Abraços,

Carlos André”

2020

Depois de alguns minutos de recordações, voltei o pensamento para o mundo real e continuei procurando um livro que um ex-aluno havia comentado comigo durante a semana. Encontrei-o sem dificuldades, estava em uma pequena banca no setor de lançamentos de literatura brasileira.

Tratava-se de um livro de contos de Carlos Santos, um escritor iniciante que havia publicado seu primeiro livro com recursos próprios. Ao ler o índice, encontrei alguns títulos interessantes: Dois Brasileiros em Moscou; O Bibliófilo; O Décimo Terceiro Andar; O Mergulho na Baia de Guanabara; O Fotógrafo. Mas um despertou-me curiosidade, chamava-se “O Seminarista”.

Abri na página indicada no índice e comecei a ler...

O Seminarista

Conheci Luiz André numa tarde de sábado, no inverno de 2016, em uma livraria. Ele estava junto à estante de literatura estrangeira. Folheava A Morte de Deus na Cultura.

Eu havia acabado de ler a crítica daquele livro. Sem uma motivação lógica, aproximei-me do desconhecido e educadamente iniciei uma conversa sobre a obra de Terry Eagleton...

Eu estava entretido no livro, não acreditando no que lia. De repente senti uma sensação de estar sendo observado por alguém. E estava.

Ao meu lado, olhando para o livro em minhas mãos, um rapaz, talvez com seus 30 anos, disse:

— Boa tarde, amigo. Peço desculpas se o incomodo. Muito bom esse livro Contos que Contei. Li há um mês, vale a pena comprar.

— Boa tarde. Agradeço a dica — respondi, quase sem olhar para o interlocutor.

— O senhor conhece o autor? — O jovem perguntou.

Ainda incrédulo com o que lia, puxei a aba da contracapa e nos dados biográficos do autor li: Carlos André dos Santos.

— Não! — Respondi

Mas deveria ter respondido: Sim! Éramos amigos de leitura.

Sérgio Coutinho
Enviado por Sérgio Coutinho em 08/09/2016
Reeditado em 17/10/2017
Código do texto: T5754203
Classificação de conteúdo: seguro
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