Almas reféns

Em meio às invocações curtas e acompanhadas de respostas repetidas, um tipo de oração própria para essas ocasiões, e em meio também aos soluços ainda contidos dos familiares e amigos mais próximos, as pessoas iam adentrando aquele espaço, onde a tristeza parecia ter cheiro. Cheiro de flor, talvez. Não! Cheiro de dor mesmo! Elas dirigiam-se ao centro, como de costumes nessas situações, uns se demoravam mais, outros menos. Mas quase todos fixavam o olhar naquele corpo imóvel, fitando mais detidamente o rosto, que se mostrava sereno, com a tez já meio pálida por falta do sangue a irrigá-la; os cabelos castanhos e anelados, lábios pouco rosados, grossos e bem definidos. Lindo rosto! Depois, saíam dali e buscavam cada um o seu conforto, posicionando-se, conforme maior ou menor afinidade e tolerância com aquele ambiente lúgubre.

Eu me posicionei mais ou menos perto da família e do caixão. Não costumo me sentir bem em velórios, mas em alguns deles não tenho como não me fazer presente, solidarizando-me com os familiares de pessoas conhecidas ou amigas que se vão. Esse era um deles. Foi dali de onde eu estava que ouvi algumas pessoas mais jovens, provavelmente, colegas de Mirna, cochichando sobre o fato que desencadeara a morte de uma pessoa ainda tão cheia de juventude.

A todo minuto mais pessoas chegavam, com semblantes sérios, como é comum em eventos dessa natureza. E Bianca, amiga íntima da falecida desde a infância, falava em baixo tom, respeitando o contexto à sua volta e cautelosa para que nem todos a ouvissem, pois nem sempre os comentários que surgem assim que os incidentes acontecem, correspondem à verdade, o que acaba, na maioria das vezes, por magoar familiares. Bianca não pretendia angariar fama de iconoclasta. Apenas era comunicativa e dada a tecer comentários sobre tudo e sobre todos gratuitamente. Ou, talvez, fosse um tanto invejosa e essa técnica de falar dos outros lhe fosse útil, como forma de levantar sua autoestima. Eu não a conhecia com propriedade para que possa afirmar aqui com convicção.

Enquanto Bianca falava e se gesticulava de forma reservada com os amigos do grupo, entre um e outro garçom que passava com a bandeja de chá calmante, oferecendo aos presentes, eu, de cá, ia associando a leitura labial aos gestos dela para tentar entender o conteúdo de sua fala. Afinal, a morte de alguém jovem sempre causa curiosidade e pavor, principalmente, quando se é mãe de jovem também. Querendo ou não, as pessoas se colocam no lugar do outro e se compadecem. Fazia tempo que eu não via Mirna. A imagem que tinha dela ainda era aquela da última vez, quando de sua formatura: saudável, elegante, bonita. Não esperava sua morte assim tão precoce.

Para minha surpresa, tomo conhecimento de que Mirna se transformara em uma dessas almas reféns do consumismo exagerado e da excessiva valorização da estética, dos padrões de beleza que a mídia impõe à sociedade contemporânea e, ainda, refém de um ideal de valores que circula nas redes sociais, em que todos são pessoas doces, meigas, humanas, sensíveis, tolerantes, humildes, bonitas etc. Ou, ao contrário, mostram-se desumanos, indiscretos, preconceituosos, sem o menor senso de valores e intransigentes nas análises e textos que publicam. Mirna não sabia conviver bem com essa exposição das subjetividades em rede. Ela não gostava de se mostrar nas redes sociais, mas entendia os defeitos e as qualidades das pessoas que se expunham nas redes sociais como regras a serem seguidas por ela. Era normal se sentir vulnerável e indecisa sobre qual seria o comportamento devido nessa ou naquela situação. Uma pessoa insegura.

Nesse momento, passa por mim alguém que me reconhece e sorri com certa simpatia. Recorro à memória, mas não consigo me lembrar o nome. Mesmo assim, sinalizo também com um leve sorriso. Ouço alguém dizendo que o séquito será dali a algumas poucas horas. Observo que uma tia da moça, cadeirante, acabara de chegar e chora discretamente, sentindo muito a morte de Mirna, contudo deixando transparecer classe e fineza nos gestos, inclusive, ao chorar.

Então, aquele silêncio reinante no ambiente me convidou a continuar com minhas reflexões sobre os que se deixam manipular, criando desejos que resultam numa demanda efetiva e desnecessária de produtos, bens ou objetos vários, numa ciranda em que a própria alma vai-se diluindo, vai se desintegrando até que a pessoa já não se reconheça mais nela mesma, vasculha seu âmago e não se encontra, numa sensação de vazio total da alma.

Quis me desligar dessas ideias, mas não consegui. Choveram ideias em minha mente, sem que eu conseguisse impedi-las. Uma dessas ideias, a que mais me incomodou, foi a de que além de produtos materiais, há os (falsos) valores exibidos nas redes sociais que também alimentam os sonhos e desejos. Esses valores são exibidos em textos diversos e nem sempre correspondem à verdade. Mas, uma vez ali estabelecidos, viram um ditame. Todos os seguidores devem curtir ou compartilhar, dando conta aos demais de sua afinidade com essa ou aquela ideia ou valor ali expressos. Mesmo que não o represente de fato. Mirna, pelo que parece, foi vítima desse ideal de valores.

Cansada que estava pelos dias de trabalho intenso que havia experimentado naqueles últimos dias, acabei tirando um cochilo na cadeira e acordei com alguém que tropeçou em meus pés.

- Desculpa, Senhora! - ouço em tom quase de sussurro.

Ainda meio sonolenta e um tanto constrangida, lancei um sorriso discreto para o velhinho, assentindo ao seu pedido de desculpas e me recompus na cadeira. Tossi para limpar a garganta e percebi que o cortejo teria início dentro em breve. Não me sobrando outra opção, insisti em minhas reflexões. Refleti agora, mais detidamente, sobre os prováveis motivos da morte de Mirna. Bianca estaria certa em sua análise? Era isso mesmo? Ou eu não soube fazer leitura labial com precisão?

Filha de pais humildes, porém de valores. Bem criada. E, se entendi bem as palavras de Bianca, vivia em busca de realização plena, de felicidade e de manutenção da juventude a qualquer custo, entregou-se ao ritual, característico de quem tem alma refém do consumismo. Todo o lucro de seu trabalho era revertido em escola, mas não qualquer escola e, sim, uma escola de nome; em roupas e sapatos de marca, em academia renomada, em suplementos alimentares, capazes de contornar os músculos, em ingressos para eventos em que famosos estariam presentes, enfim, à busca do gozo permanente. Enquanto estou ali perdida nesses pensamentos, dá-se início à despedida dos parentes e amigos.

Nesse instante, o silêncio se rompe naquele espaço e na fala desesperada da mãe de Mirna, que chora compulsivamente sobre o caixão e libera palavras que aliviam sua alma, aparecem dados novos. Esses dados novos endossam as palavras de Bianca. Dessa forma, permite-me uma possível leitura: com o passar do tempo, essa tendência consumista de Mirna foi se acentuando a ponto de ela entender o trabalho como algo entediante, estressante, preferindo sempre o lazer ao trabalho. Distanciando-se das responsabilidades. Não demorou muito e lá estava ela desempregada em plena crise econômica. Problemas à vista! Mirna precisa do trabalho para sobreviver.

De desempregada à depressão, foi um estalar de dedos, pois não conseguia mais acompanhar as colegas nas compras e nas aquisições de bens materiais que faziam. Já não se identificava mais com o grupo. As roupas que usava eram as mesmas da coleção passada. À academia não podia mais ir. Vida social já não existia mais para ela. Não tinha pais abastados que pudessem manter seus anseios e, então, restou-lhe apenas a doença na pobre alma refém desse capitalismo, que transforma as pessoas em mercadorias e desse exibicionismo gratuito a que estamos sujeitos, quando desavisados.

Com depressão, perdeu o apetite, emagreceu, perdeu a massa muscular obtida a custo na academia, perdeu o vigor físico, abateu-se, dando condições para que tantos outros males se instalassem em seu corpo e em sua alma refém. Agora estava ali, alimentado ladainhas e mais ladainhas e causando cochichos e sussurros. Certamente será lembrada por muito tempo ainda como a moça que, ingenuamente, deixou-se levar. Não teve senso crítico e maturidade emocional necessários à vida.

Entendi, enfim, o que havia acontecido à Mirna. Condoeu-me a alma. Alma também refém. Não refém do consumismo e da estética, como a de Mirna. Mas refém da comodidade que tomou conta de minha alma há anos. Nada mais me sensibiliza, nada mais me mobiliza, nada mais me motiva a sair do meu individualismo e fazer algo pela coletividade. E, então, vieram-me certezas ainda mais contundentes. A sociedade contemporânea não está se preparando para aceitar o ato de envelhecer com a mesma naturalidade com que outras sociedades conseguiram aceitar outrora. Essa mesma sociedade não vem se preparando para o consumo sustentável como já se tem constatado ser necessário. Consumir, consumir e consumir. Essa é a lei!

Nada contra a longevidade, contra os avanços biotecnológicos que prometem vida eterna. Entretanto, há que se encontrar um equilíbrio, resgatar valores perdidos, evitando absurdos aos quais estamos sujeitos a todo instante, como o de ver tirinhas memes, sendo exibido em redes sociais, em que se contrapõem fotos antigas de pessoa pública, exibindo seu vigor e beleza de outrora, a fotos recentes dessa mesma pessoa, em que já se mostram os sinais do tempo, com o objetivo único de criticar aquilo que é (ou pelo menos, deveria ser!) tão natural: o envelhecimento. Qual é o sentido de tudo isso? Será que o culto exacerbado ao belo acabará por tirar esse direito de todos, encurtando a vida? Isso não é contrassenso? - eu me pergunto, procurando encontrar respostas, enquanto observo o caixão de Mirna que passa.

E o cheiro da dor continua no ar e nas almas reféns! A mesma ladainha também insiste em continuar!

A vida é dura
Enviado por A vida é dura em 04/09/2016
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