UM GENTLEMAN À NOITE, CARRANCA, DE DIA! - Série: Figuras da Bahia

www.bcidadeemfoco.blogspot.com.br 2/09/2016

UM GENTLEMAN À NOITE, CARRANCA, DE DIA! - Série: Figuras da Bahia

Nos idos da década dos anos 1970, tive a oportunidade de conhecer parte da sociedade de Feira de Santana, através de casual encontro com um amigo poçoense de infância, Florisvaldo Brito, então gerente da Ag. Do Banco Econômico S/A, uma das maiores instituições de crédito genuinamente baiana e que tinha seus tentáculos espalhados pelo interior do Estado.

Talvez dois ou três anos mais velho que eu, o Florisvaldo, quando criança, tinha um apelido sui generis: ‘boi sonso’. Era uma boa praça, filho de dona Dadá, uma senhora muito benquista e recatada, que residia na também apelidada Rua do Açude, se não me falha a memória, Rua Raimundo Magalhães, quase na esquina que dava para a estrada Poções-Morrinhos-Canaã-Iguaí-Ibicuí-Ponto do Astério.

Fazia anos que não encontrava Florisvaldo Brito e fiquei feliz em vê-lo, bem de vida, gerindo a agência do Econômico. Era uma sexta-feira e eu estava hospedado no Hotel Caroá, até então, o melhor da cidade, com serviços e aposentos de um 4 estrelas, situado no centro de Feira, uma cidade em plena ebulição e desenvolvimento, a 111 Kms. De Salvador.

Já fazia algum tempo que me hospedava em Feira, tendo em vista que ainda morava no Rio de Janeiro, mas tinha que vir todos os meses à ahia para tratar dos meus negócios e do meu trabalho principal, a revista ATUALIDADES que editava e imprimia no Rio, dadas as facilidades gráficas e, conseqüentemente, de qualidade de impressão, prazo de feitura e entrega, e preço, condições que ainda não tínhamos em solo baiano. Lembro-me que as primeiras edições de ATUALIDADES foram impressão na gráfica dos ‘Beneditinos’, em Salvador, na Rua Paraíso, entre a Av. 7 de Setembro e o Quartel General da 6ª Região Militar.

Florisvaldo gostava muito da noite e dos restaurantes mais badalados de Feira, e isso fazia parte da sua rotina como gerente de Banco, sempre convidado e solicitado pelos clientes. E foi numa ocasião dessas que nos encontramos. Eu estava numa mesa ampla, com alguns amigos recentes e ele em outra mesa. E a música nos fez a aproximação. Sempre acompanhado do inseparável violão, chamei a atenção dos convivas que se aproximaram e acabamos por realizar uma grande farra que foi até a madrugada, regada a Scotch de primeira linha. Imediatamente o reconheci e daí por diante passamos a nos ver quase todos os dias e/ou noites, quando, por força do trabalho, passava dias e mais dias em Feira.

Registrar que nessa mesma ocasião encontrei uma grande amiga de Poções, filha do grande amigo e grande músico, Arnaldo Fagundes, de saudosa memória. É bom situar que Feira de Santana era uma cidade boa de se viver, tranqüila e próxima da Capital.

Neste mesmo período conheci uma figura que inspirou o título deste conto. Ele era sócio de uma concessionária de veículos que ficava quase em frente ao Hotel Samburá. E como meu carro fosse da marca da concessão que ele representava, já o conhecia de vista, pois era em suas oficinas que comprava peças e fazia reparos no veículo.

Numa noitada dessas, e é bom que se diga, Florisvaldo Brito não se encontrava conosco, num restaurante muito badalado que ficava próximo à Estação Rodoviária de Feira, quando a farra começou a ficar boa, eis que esse cidadão levanta-se da sua cadeira e aproxima-se de nós, cantando com uma bela voz, bem afinada e de entonação média, uma música que estava em voga, que eu conhecia e acompanhei ao violão. E daí por diante, ele passou a ‘fazer parte da roda’, como dizemos por aqui.

Em outras noitadas, vez por outra, ele chegava e fazia parte do grupo, verdade se diga, uma ou outra pessoa o conhecia e ele sempre alegre e solícito soltava a voz. E foi assim, meses e meses. Numa dessas ocasiões, fui passar um fim de semana em Feira e precisei de reparar um pequeno defeito que meu carro apresentou na estrada. Não era nada grave, mas o veículo encontrava-se na garantia e fui até a concessionária para fazer o serviço. Conversei com o atendente que me passou para a mecânica e fui informado que o carro ficaria pronto no final da manhã. Quando me preparava para sair, vi a figura de costas, sentado em sua carteira e fui cumprimentá-lo. “Olá, fulano, como vai?” – Ele olhou-me carrancudo e acenou brevemente, voltando aos seus afazeres. Achei estranho. Seria aquela figura um sósia do ‘alegro ragazzo’ das noitadas? Perguntei a mim mesmo e tomei meu rumo para o hotel. Mais tarde, informaram-me por telefone de que o serviço teria terminado; fui buscar o veículo e já não encontrei o figurão. Antes de sair, perguntei ao atendente se aquele senhor era fulano, que gostava de freqüentar os restaurantes tais e tais, e ele confirmou: - “É ele, sim”. Ao que eu comentei sobre o que se passava e o rapaz riu e disse: -“Ele é assim mesmo. Todo mundo reclama porque quando ele bebe fica totalmente diferente do que ele é, aqui na empresa.” E arrematou: - “Dizem que ele tem dupla personalidade!”.

É mole, amigos? O homem tinha dupla personalidade. Quando bebe é um; sem beber, é ele mesmo. Qual dos dois eu realmente conhecia? É um caso para se consultar o Freud.

Mais tarde, conversando com Florisvaldo Brito, comentei o fato e ele deu uma gargalhada: -“ Você não sabia, Ricardo? Aquele cara é gente boa, mas tem esse problema. Quando bebe!...”

Durma com uma barulho desses, amigo!

Ricardo De Benedictis
Enviado por Ricardo De Benedictis em 02/09/2016
Reeditado em 20/01/2018
Código do texto: T5747851
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