APARÊNCIAS*
Finalmente um final de semana de paz! O domingo quase terminando e nenhum incidente. Olhava para a cena e quase não conseguia acreditar. Os raios de Sol do fim de tarde iluminavam placidamente a sala. O filho pequeno brincava feliz com o labrador na poltrona de um lado enquanto a filha adolescente olhava absorta para o celular. Já estavam sentados juntos a quase duas horas sem brigarem. Era quase um recorde. A esposa lavava a louça do almoço enquanto cantava uma música pop bobinha que ele gostava. Nada daqueles sertanejos pavorosos que lhe doíam dos ouvidos até a raiz dos cabelos. Era do filme que acabara de assistir. Pela vigésima vez, diga-se de passagem. Percebeu que foi a primeira em que ela estava por perto e não ficou fazendo comentários depreciativos sobre a qualidade deste. Em um impulso se levantou, deixou o locutor de futebol da TV falando sozinho, foi até ela e a abraçou por trás:
-Ei, o que você está fazendo? Eu tô ocupada!
-Deixa aí que eu lavo daqui a pouco.
Pegou em suas mãos frias e molhadas e a fez dar um rodopio. Depois a trouxe junto ao corpo e começou a cantar de onde ela havia parado e a dançar juntinho:
-All I wanna do is find a way back into love. Pararará
I can't make it through without a way back into love
Oh oh oh...
-Aí meu Deus! Começou. Deixava-se levar sorrindo.
-Larga a mamãe. Larga a mamãe. O moleque estava atrás dele e lhe dava socos na bunda. A soltou, virou-se e fez uma pose de ofendido:
-Qual é sua, rapaz? Só porque fez cinco anos pensa que é gente? Ela é MINHA esposa. Batia com o indicador no peito.
-Mas ela é MINHA mãe!
-Ah, cê tá muito abusado! Vem prá briga, vem! Fez posição de defesa de boxe e lhe deu um direto de esquerda de brincadeira. Este defendeu e passou a lhe bater na barriga:
-Você não pode me vencer! Eu sou o mais forte do universo!
-Ah é? Então toma isso! E isso!
-Marley, me potege! Me potege!
O cachorro levantou do tapete e se apoiou nele, tentando morder seu braço. Passou a fingir dar socos nele:
-Ah, você quer briga, seu cãonalha? Pou! Pou! Pou!
Enquanto brincava com os dois percebeu que a filha o estava filmando. Passou a encenar com mais ânimo:
-Então vocês atacam de dois! E você ainda vem pro clinch! Pou! Pou! Pou! Quanto mais elas riam, mais teatral ficava. Agarrou o bicho e se jogou no chão. O filho continuava lhe socando:
-Toma, toma, toma...
Deu uma chave de perna no mascote e prensou seu focinho contra o chão com o rosto. Contou até dez e soltou:
-Ipon! Ganhei a luta! Medalha de ouro pro Brasil! sil, sil ,sil.
-Não ganhou nada! Não ganhou nada!
Sentou-se no chão ofegante. A filha ria e continuava gravando. A esposa olhava-o sorrindo. Ao olhar para o celular lhe veio a ideia de postar o vídeo no Facebook. Não costumava mandar fotos ou coisas de família. Na verdade, fora algumas brincadeiras sem importância, não postava nada. Mas ali estaria ele brincando com seus filhos, com a risada da esposa de fundo. A prova cabal para os parentes dela que ele se relacionava bem com as crianças. No seu serviço posaria de pai amoroso para as gerentes e colegas e afastaria as curvas de rio que viviam dando em cima. Pelo menos todas veriam que era bem casado. Se se engraçar, já sabe como é! E queria ver a mulher se fazer de vítima com as amigas depois que elas vissem isso. Sabia que não eram todos os maridos que se dignavam a brincar assim com os filhos. Com esses pensamentos ficou estático por uns quarenta segundos:
-Tudo bem, pai?
Chacoalhou a cabeça:
-Tudo... Pensando em ser aquilo que eu quero parecer ser...
-Ãnnnh? Como?
-Apaga essa porcaria! Apaga! Se você colocar na internet eu te esgano!
Saiu correndo atrás dela fazendo-lhe cócegas:
-Pará pai! Pará! Cuidado com o celular! Manhê...