O FIM.
- Mara, venha aqui. Chamou o pai.
A filha, sem nenhuma pressa, achegou-se ao pai. Vestia calça jeans, blusa de malha azul e tênis. Estava pronta para mais um embate com o pai.
- O que foi? Respondeu simplesmente.
- Nada. Queria apenas vê-la e percebê-la como minha filha.
Isso desconcertou a filha. Resolveu sentar-se e fazer companhia ao pai. Olhou atentamente para ele. Já era idoso, tinha sinais da idade marcados na face demonstrando claramente que já havia passado dos oitenta anos. Vestia roupas simples e sentado no sofá aparentava uma fragilidade jamais imaginada pela filha. Observou um pouco mais e percebeu que não só a idade fazia a diferença na aparência do pai, mas também um sinal de fraqueza. Como se estivesse a ponto de desfalecer. Teve um momento de ternura. Resolveu perguntar:
- O que há meu pai? Por que está tão sério?
- Minha filha, respondeu o pai, não estou sério. Estou apenas querendo orientá-la sobre alguns aspectos.
A filha franziu o cenho. Nunca em sua vida havia visto o pai falar-lhe daquele jeito. Sempre fora rude. Dizia palavras grosseiras e com tom de comando. Então respondeu:
- Fale meu pai.
O pai olhou-a longamente. Observou que a filha já não era tão jovem assim. Sempre a considerou uma menina, mesmo tendo ela trinta anos. Mas percebia-a ainda como uma rebelde. Nesta idade e ainda não havia se decidido sobre o que queria da vida. Naquele traje tão adolescente demonstrava um ar infantil e teve um lapso de arrependimento, mas que passou e resolveu ser firme.
- Há quanto tempo vive esta vida inconsequente minha filha. É preciso crescer. Não me terá aqui para sempre para que eu possa defende-la das armadilhas da vida.
A filha sentiu um baque. Sempre o pai gritava e a ameaçava propondo retirar o carro, as viagens que financiava e a festas que fazia. Pensou nas vezes que foi rebelde e o quanto foi inconsequente, mas ainda não estava preparada para crescer. Queria a vida livre. Sem responsabilidades. Respondeu simplesmente.
- Sim meu pai.
O pai percebeu uma resposta infantil. Não disse mais nada. Abraçou a filha e propôs um desafio.
- Sei que não é fácil, mas dentro desse ano você deverá simplesmente ser feliz. Não faça nada. Fique o dia inteiro dentro de casa. Saia quando quiser se divertir. Volte quando quiser descansar. Marque o seu tempo conforme a sua vontade. Desenhe suas horas conforme os seus sonhos. Dentro desse ano faça o que tiver vontade de fazer. Quando esse ano terminar deverá obediência única a sua capacidade de discernimento. Caso perceba que a vida é um eterno sonhar terá direito a viver para sempre do que sempre te proporcionei: vida fácil e divertida. Mas se ao fim desse ano perceber que estava errada deverá ceder tudo o que proporcionei a você. Que dentro de um ano viva o que quiser viver. Não conversaremos mais sobre isso até que finalize esse ano. Terá sua própria casa. E por fim, não deverá me visitar neste período e isso é muito importante.
A filha mais uma vez surpreendeu-se. Calou-se pois estava muito bom. Do jeito que desejava. Viver uma vida sem preocupações e problemas. Abraçou o pai. Uma lágrima singela rolou dos olhos do pai. Mas o que fazer se era preciso fazê-la crescer?
E começou o desafio. Primeiro dia só alegria. Liberdade… Liberdade… Como era bom a liberdade. Não havia quem a recriminasse. Era sair e chegar a hora que quisesse. Era só diversão. Também aos trinta anos o que poderia esperar? Segundo dia a mesma coisa. Bom… Muito bom… E assim passavam os dias. De vez em quando sentia saudades das broncas do pai. Dos conselhos coerentes mesmo que não fossem por ela seguidos. Hora ou outra vinha uma pontinha de saudade, como se estivesse a espreita-la de forma insistente. Sentia vontade de ligar, mas se continha. Era um combinado e não podia quebra-lo.
Um dia teve um pesadelo. As paredes de sua casa caíam. Cada tijolo batia ao chão e virava farelo. Formavam um funil como se fosse um redemoinho e ia engolindo sua vida e sua história. Viu passar um pouco de sua vida por esse redemoinho. Iam passando cenas felizes de sua infância. Laços de amizade com o pai iam sendo rasgados e formavam uma fumaça densa e negra. Acordou aos gritos. Quem poderia ouvi-la?
Por outra vez chegou tarde em casa. O silêncio a incomodou. Olhou pela fresta da janela e lá fora o silêncio imperava. Quis gritar e dizer que estava sozinha. Que precisava falar. Precisava de alguém que a ouvisse. E nada. Pois o silêncio massacrante dizia que o ideal era ficar calada.
Por uma terceira vez marcou um encontro para sair com colegas. Já não se sentia à vontade. Era como se não fizesse parte daquele grupo. Já não estava se divertindo tanto como antes. As conversas estavam tornando-se cansativas e as risadas já estavam soando como um barulho ensurdecedor. As músicas estavam insuportáveis. Ao chegar em casa pegou o telefone. Discou os quatro primeiros números e desistiu. Ainda estava bom demais. Ia perder aquela liberdade perfeita? Não.
Por uma quarta vez encontrou uma vizinha de sua família. Ouviu da vizinha que seu pai estava triste. Já não queria se alimentar e não desejava conversar com ninguém. Ele havia sido hospitalizado. A vizinha não sabia ao certo a situação dele. Novamente seu coração de filha balançou. Mas ainda não era tempo. Pensou nas pessoas que estavam com ele e que poderiam ajudá-lo. Guardou esse sentimento no fundo da alma e continuou a viver desregradamente.
Novamente teve um novo pesadelo. O céu vinha abaixo. Lágrimas desciam em forma de sangue e banhava as plantas que também derramavam sangue em forma de seiva. Saiu para presenciar o fenômeno e viu em cada lágrima uma cena de sua vida. As cenas iam derretendo e formando novamente pó. O pó se transformava em rocha com inscrições vermelhas onde podia se presenciar palavras de dor e sofrimento e ao fim caiam num rio, invadiam o mar e se misturavam ao infinito de águas num sem fim de sofrimento. Agora acordou aos gritos e percebeu que o telefone tocava.
Teve um lapso de desespero. O que estava fazendo ali? Porque deixara a sua família. Que loucura havia feito. Como fora capaz de abandonar o que havia de mais sagrado em sua vida? O telefone tocava insistente. Não queria atender. Tinha medo do que pudesse ouvir. Medo de quem estava do outro lado. Medo da vida. Caíra num labirinto de dor e sofrimento. O telefone parou.
Amanheceu o dia. Novamente livre dos pesadelos passou o dia tranquila. Saiu para passear. Voltou para descansar. Saiu para se divertir. Voltou para descansar. E este movimento repetiu-se por mais dez dias.
Ao fim dos dez dias estava novamente em casa sozinha quando ligou a televisão. Ouvia o noticiário local quando comentaram uma nota de falecimento. Em primeiro momento não se importou. Até que foi dito o nome. Sentiu uma dor imensa. As lágrimas começaram a brotar de seus olhos incessantemente. Saiu correndo em disparada. Queria chegar o mais rápido possível. Queria dizer palavras de amor, de arrependimento, de consolo, de qualquer coisa que pudesse amainar sua dor.
Passou a observar que em seu trajeto iam aparecendo palavras de ordem: não corra, não chore, não se arrependa, não se importe, não dê ouvidos. Seja feliz, seja o que quiser, faça o que quiser, marque o seu ponto, deixe sua marca, faça diferente. Eram palavras desconexas que a faziam refletir sobre a verdade da vida. O que realmente era a verdade?
Parou no meio do caminho. Sentou-se ao chão. Riscou algumas letras: Pai. O que fazer? Faltavam dois dias para o final do prazo combinado. Precisava ser forte. Parou um táxi. Estava mais contida. No caminho de retorno para casa iam passando cenas em sua vida. Momentos de alegria, de felicidade. Quando teve o primeiro lapso de arrependimento.
Quando chegou a porta da casa o silêncio imperava. Caiu em prantos. Chorou copiosamente por minutos a fio. Quando se acalmou levantou lentamente. Olhou ao redor. Ninguém se importava com a sua presença. Olhou para frente e caminhou cambaleante até a sala. As luzes ofuscaram sua visão. Havia apenas sombras que iam tomando formas gigantes. Eram como se os seus fantasmas que a perseguiram há anos houvessem chegado primeiro do que ela aquele destino traiçoeiro. Olhou fixamente para uma folha de papel que alguém lhe entregara. As letras trêmulas diziam: Amo você! Seja bem-vinda!
Não se conteve. Agarrou aquele papel e gritou loucamente. Amigos da família e vizinhos vieram em seu socorro. Explicaram o acontecido. O pai pedira que qualquer coisa que acontecesse com ele era para dizer apenas aquelas palavras: Que ela era sua filha amada e que a sua partida serviria para faze-la crescer.
Tomou o papel nas mãos e o levou ao coração. Sentiu uma dor fina cortar-lhe a alma. Não teria mais o chamego do pai. Aquele carinho especial jamais seria sentido novamente. Tomou coragem e caminhou próximo ao pai. Deu-lhe um longo beijo e com lágrimas nos olhos viu as cenas se repetirem. Agora marcavam como ferro em brasa. Era o fim. Sabia que era o fim. De repente lembrou-se do combinado com o pai. O que ele queria lhe dizer depois de um ano? Faltava tão poucos dias para o fim daquele combinado.
Olhou em volta. Alguém lhe entregou um embrulho. Parecia um livro ou uma pasta. Foi abrindo aos poucos. Tinha medo do que pudesse encontrar. Percebeu-se como uma pessoa covarde. Veio então uma força diferente. Como se fosse um consolo por aquela perda irreparável. O embrulho trazia um livro grosso com as palavras escritas em formato grande: Livro do conhecimento. Foi abrindo a primeira página. Nada escrito. A segunda, também em branco. Abriu rapidamente o livro ao meio: nada também. Foi até a última página e em letras garrafais estava escrito: Conte sua própria história.
Agora compreendeu. Com lágrimas nos olhos compreendeu que precisava traçar seu destino. Que cabia a ela fazer diferente, ser gente, ser consciente. Sentou-se ao chão com o livro aberto. Presente de seu pai. Sem uma linha sequer escrita. Como pôde ser tão inconsequente. Como não compreendeu antes que precisava fazer a diferença. Que se o livro estava em branco é porque não havia escrito ainda uma linha de sua história.
Levantou-se lentamente. Enxugou as lágrimas e prometeu ao pai que daquele dia em diante seria uma outra pessoa. Conseguiria trabalho. Seria uma pessoa melhor. Faria a diferença na sociedade. Enquanto ia tendo esses pensamentos uma voz suave ia dizendo: Acorda filha. Está tendo um pesadelo?
Abriu os olhos e viu seu pai. Estava com o semblante suave. Não conseguiu compreender o que era sonho e o que era realidade… Sorriu feliz. Seu pai estava ali. Não saberia dizer. É como se ele estivesse vivo em sua alma.