IMPEACHMENT: Como assim?

Entrou no plenário na hora marcada e fez uma cara de poucos amigos. Ouviu calada a ladainha inicial e manteve o controle para não começar xingando o Presidente do Senado. Estava doida para chamar a mãe dele de sapo boi e o pai de perereca.

Assim que foi autorizada a falar pelo Ministro R.L (Presidente do Supremo), ela fechou os olhos e respirou fundo. Sem mais delongas começou a falar com voz firme e pausada, agindo como se todos os presentes fossem seres inferiores e estivessem completamente nus. Não sendo percebidos como uma ameaça.

"Caro Ministro do Supremo Tribunal Federal, caros Senadores, povo do meu querido Brasil. Venho aqui hoje defender corajosamente a democracia desse país e o projeto político que o governa há mais de uma década. Projeto do qual eu me sinto uma digna e fiel representante desde o seu início, sem vergonha nenhuma disso.

Afirmo de forma categórica para todos vocês que não posso ser julgada nem condenada, e muito menos afastada da chefia de governo desse maravilhoso país. Isso não seria justo e também não seria coerente, não me sendo difícil explicar todos os sete motivos que embasam tal certeza. Sete aliás, é um número cabalístico.

Em primeiro lugar eu não cometi nenhum crime de responsabilidade, pois o que fiz também foi realizado por um sem fim número de prefeitos, governadores e presidentes ao longo de mais de duas décadas. E nenhum deles jamais foi questionado e muito menos condenado por praticar tais atos. Mereço portanto, no mínimo a mesma deferência e complacência, principalmente por ser mulher.

Essas tais pedaladas fiscais são apenas uma miragem em um grande deserto de ideias e atos. Elas não passam de um suspeito eufemismo criado e utilizado para tentar imputar-me um crime que de fato não foi cometido. Da mesma forma que essa tal contabilidade criativa, que nunca existiu na prática.

Em segundo, minha equipe na campanha eleitoral fez uso, contra minha vontade, daquilo que se conhece como caixa dois. Mas nunca existiu nesse país uma campanha de qualquer político que não fosse financiada dessa forma. E que não fizesse corriqueiramente uso do mesmo instrumento, muitas vezes até de caixa três e caixa quatro. Não tem jeito.

Em terceiro lugar, todos os grandes e famosos partidos da nação sempre foram financiados por grandes empreiteiras, e isso vem acontecendo há mais de 30 anos. Como o meu poderia ser diferente e por que teria que ser execrado por esse tipo de coisa?

Tal discriminação não faz nenhum sentido e dá a clara impressão de uma "perseguição política" insana e injusta. Eu e os membros do meu partido somos verdadeiros santos perto daqueles diabinhos e capetinhas que nos cercam e com os quais ainda somos obrigados a conviver.

Em quarto, todos os escândalos envolvendo empresas estatais que ocorreram durante o meu governo, já ocorreram em outros governos. Todos que ocuparam esse lugar antes de mim também se envolveram com esse tipo de situação da mesma maneira, muitas vezes até pior. Por que comigo deveria ser diferente e por que eu deveria pagar o pato por isso sozinha.

Em quinto lugar, o enorme engano que dizem que cometi quando ocupei com mérito a presidência do Conselho de Administração da maior estatal do país, não passa de uma pequena falha. Apenas um mero erro de avaliação.

Como uma ser humana imperfeita (sic), mesmo que super bem informada, estou sempre sujeita a esse tipo de coisa. Todos nós podemos cometer enganos semelhantes, ainda mais quando eles acontecem de maneira inocente e desinteressada e não produzem riqueza ilícita.

Em sexto, afirmo que não posso ser responsabilizada diretamente pela crise econômica que a nação enfrenta. Isso é ridículo! Não existem meios de controlar as forças de mercado (taxas de juros, câmbio e inflação e divida pública) e nem os interesses de seus principais integrantes.

Principalmente quanto se trata de interesses escusos e das nefastas intenções dos norte-americanos, dos canadenses, dos ingleses, dos chineses, dos australianos e da comunidade européia. Gente bastante gananciosa e sem escrúpulos.

E para finalizar, por ser eu a primeira mulher eleita para dirigir essa nação, estou certa que não mereço sair do cargo dessa maneira. Uma presidenta (sic) não pode ser punida e expulsa só por que quis manter em vigor planos e benefícios que atendiam as necessidades da grande maioria da população. Mesmo passando conscientemente por cima do Orçamento Geral da União e do Congresso Nacional.

Isso não deve ser visto como pecado, e sim como virtude! O que faz de mim uma heroína, uma espécie de Robin Hood. E não uma vilã, como desejam todos os políticos da oposição e a maior parte da imprensa desse país.

A única coisa pela qual eu me julgo responsável, juntamente com vários de meus correligionários, é a tentativa de impor ao país uma participação maior do Estado na economia e na vida das pessoas e organizações.

Criando e também estatizando empresas que são estratégicas e que, sem dúvida, contribuirão para a igualdade social e o desenvolvimento econômico e cultural da nação. Como há muito já acontece em lugares como Cuba, Venezuela, Coréia do Norte e Albânia. E isso, pelo eu que sei, não é crime.

Portanto, depois de tudo que expus acima, fica fácil concluir de forma imparcial, serena e cabal: O que estão fazendo comigo É GOLPE. Um golpe claro contra a democracia. E como tal deve ser denunciado em nível nacional e internacional, e também impedido.

Além disso, os levianos autores do mesmo precisam ser rapidamente caçados e presos (e olha que a Câmara dos Deputados é logo ali). Se possível, eles também devem ser mortos por um pelotão de fuzilamento ou coisa que o valha. Não tenho a menor dúvida disso.

Penso que qualquer pessoa que se disponha a decidir sobre o destino de alguém precisa ter sua consciência limpa e uma reputação ilibada. E esse não parece ser o caso no momento, já que a integridade moral da maioria anda meio abalada depois das últimas operações deflagradas pela Polícia Federal. Em resumo, todo mundo sabe que aqui não tem mocinho, só tem ...

Graças a Deus, e ao contrário de muitos dos presentes, eu não tenho contas em nenhum Paraíso Fiscal, não possuo propriedades no exterior e não recebo propinas de grandes empresas. Definitivamente eu não sou esse tipo de gente e a minha alma nunca esteve e nunca estará à venda.

Por essas e outras quero lembrar àqueles que ora me julgam dois antigos e oportunos ditados populares que meu dileto camarada e padrinho político adora citar: macaco velho não põe a mão em cumbuca. E quem com ferro fere, com ferro (certeira e sorrateiramente) será ferido.

Se mesmo assim, este ignóbil processo persistir e ainda por cima terminar com a minha injusta condenação, o mais adequado seria a convocação de novas eleições presidenciais até o fim deste ano. Já que é muito importante para o povo ter seu governante supremo eleito de forma rápida e direta, sem precisar conviver com interinos suspeitos e indesejados.

Se for preciso, vamos parar o país para que isso aconteça. Vamos promover greves. Vamos sair em massa às ruas para tentar impedir a conclusão desse tosco e esdrúxulo GOLPE DE ESTADO. Um golpe de Direita que se encontra em pleno andamento. Afinal de contas, se alguns aqui acham que estava ruim comigo, pior ficará sem migo (sic).

Ao encerrar, quero que todos tenham certeza de uma coisa: Eu não sou Getúlio, não sou Jango e não sou Collor. Não vou me suicidar, não vou fazer acordos e nem vou renunciar. Os meu adversários terão de assumir que são um bando de golpistas, que não respeitam a vontade soberana do amado povo brasileiro.

No passado, como militante e guerrilheira, eu combati a ditadura militar instalada nesse país. No presente, como integrante de sua classe política, eu prometo continuar combatendo pela democracia enquanto meu coração bater e o sangue correr pelas minhas veias. Apesar de tudo, sei que ainda há esperança e eu não me permito desistir sem lutar.

Muito obrigada pela atenção de vocês e que todos tenham uma boa tarde. Sigamos firmes e em frente sem jamais desistir. Avante, meus companheiros e minhas companheiras de luta. Vamos juntos até conquistarmos a nossa bela e merecida vitória final. É isso aí."

Ao terminar seu discurso ela invocou o direito constitucional de ficar em silêncio para não responder a nenhuma das perguntas que os Senadores pretendiam fazer. Não desejava ficar ali nem mais um minuto. Muito menos mais algumas longas horas.

Não se despediu de ninguém e nem fez menção de olhar para trás. Saiu apressada do plenário do senado deixando aquele "circo" pegando fogo. Não ouviu nem os raros aplausos dos membros do seu partido, que ainda formavam sua fiel e pequena "tropa de choque" dentro daquela instituição.

Ligeira, ela saiu de cena se sentindo a "última bolacha do pacote". Como se o mundo girasse ao seu redor, sem nem saber que estava no começo de uma labirintite. Mais uma das muitas doenças que insistia em concorrer com a tosca mentalidade desenvolvida por sua legenda partidária.

Entrou em sua limousine e partiu de volta para o palácio onde estava morando. Foi conduzida formal e solenemente por seu motorista, seu secretário e mais dois guarda-costas. Em segurança, consultou seu relógio de ouro e descobriu que já estava atrasada para o almoço. Uma pena.

Relaxada e em segurança, lembrou novamente por um breve instante do seu padrinho político, sorrindo de orelha a orelha e pensando alto: "Deram uma paulada na cabeça da jararaca, mas ela não morreu. Ela ainda está viva. Muito viva".

Também pensou no que acabara de fazer e em como estava ficando cansada de toda aquela palhaçada sem fim. Uma farsa digna de Kafka, que lhe impusera a escolha de uma estratégia agressiva e improvável, chutando o traseiro de muitos sem pensar nas reações emotivas e nas consequências legais.

Todos sabiam que não fazia parte de sua índole esperar pelo resultado de braços cruzados. E nem passava por sua cabeça se colocar como uma presa indefesa, pronta para ser devorada. Se fosse para cair, era para cair de pé. Se fosse para morrer, era para morrer tentando se salvar.

Além de tudo isso adorava arroz com brócolis e salmão com alcaparras e gostava sempre de chegar na hora marcada. Principalmente quando estava com muita fome e tinha gente importante aguardando sua presença. Afinal, não era sempre que recebia um juiz bonitão da região sul para almoçar (ainda que ele fosse da primeira instância). Jesus toma conta!

Mello Cunha
Enviado por Mello Cunha em 26/08/2016
Reeditado em 16/09/2016
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