A REUNIÃO

Arrumava as cadeiras como fazia todos os dias. Por causa de um problema no metrô chegou uns dez minutos mais tarde, quase em cima do horário da reunião. A sala ficava dentro de uma basílica na Liberdade. Chegava-se na porta por uma pequena escada, lá dentro parecia que se visitava outro mundo. Saía-se da confusão da metrópole cinzenta para entrar em um mundo marrom de madeira de lei e de silêncio. O enorme pé direito dava a construção um ar de gravidade, quase de imponência. No cômodo alugado por apenas duas horas e meia, de segunda a sexta, havia uma enorme mesa de madeira maciça. Tudo iluminado pela luz do Sol que entrava por uma enorme janela. André, o "dono do grupo", já estava sentado. Sem fazer porra nenhuma! Apenas fazendo seu monólogo sobre a responsabilidade do secretário, como que fazendo um favor ao lhe encher o saco. Meu Deus, que vontade de mandar-lhe a merda! Nem adianta explicar, de novo, que mora em Guaianazes, saia às 09:00hs para poder chegar aqui no Centro às 10:30hs e ter tempo de arrumar tudo, que fazia isso sem faltar uma única vez há mais de quatro meses. O cara havia fundado o grupo, o primeiro de Narcóticos Anônimos no Brasil naquele horário. Isso já faziam 5 anos, o mesmo tempo limpo que ele tinha. Para piorar era daqueles que conseguira sucesso econômico na Irmandade. Possuía empresa, BMW, sempre uma namoradinha gostosa. O texto básico dizia que aceitação social não significava recuperação. Uma pinóia! Essa parte do livro azul tinha que ser revista. Se fosse para escolher entre ser o mister serenidade, vivendo sempre duro, e ter a vida desse xarope. Ah, malandro... Não pensaria duas vezes!

A verdade, que lutava para aceitar, é que a coisa toda já estava cansando. Acordar cedo, dar um "tapa" na casa da sua mãe, ficar duas horas na condução para vir para o grupo, arranjar um real para comer no Bom Prato da Galvão Bueno, matar o tempo a tarde até a hora de voltar para a Zona Leste e ir para estágio de auxiliar de enfermagem. Aí sofrer todo o peso da sua " falta de tarimba" dentro dos hospitais, onde se sentia um peixe fora d'água, e só voltar para casa de madrugada. Tudo isso dia após dia. Ele que já fora aluno da melhor universidade do Brasil, professor sempre festejado, viajara pelo país inteiro fazendo política estudantil. E enfiou tudo isso no cachimbo! Virou tudo fumaça...

Bem, esse era o ponto. Estivera completamente afundado no uso de drogas. No desespero de mudar de vida queimou todos os navios que poderiam lhe levar à sua vida antiga, colocando em não usar mais todas as suas fichas. Até o curso que fazia agora era porque tinha um posto garantido para quando terminasse. Um emprego técnico... A antítese de todos os seus sonhos. O que não podia era continuar naquela degradação.

Hoje tinha que se virar com a mesada que seu avô dava, suficiente só para os bilhetes de trem e ônibus e o cigarro.na Praça João Mendes. Era o último dos seus problemas, mas vivia sonhando com um relacionamento. Só que sua habilidade com as mulheres era abaixo de zero. Nem com as tão sempre dadivosas companheiras conseguia alguma coisa. Mas restava sempre a pergunta, não era mais as drogas, o que era agora?

Ainda faltavam 5 minutos para o começo da reunião e os primeiros companheiros começavam a chegar. Uma das coisas legais daquela sala era a sua localização e horário. A frequência variava muito. Tinha os que trabalhavam por perto e aproveitavam o almoço e tinham os que estavam começando e então estavam desempregados. Era até uma piada interna. O único grupo que ninguém ficava preocupado se o fulano desaparecia. Não tinha voltado a usar, tinha arrumado emprego. Havia os que trabalhavam à noite. Quando muito cansados sentavam nas últimas cadeiras para tirar uma sonequinha. Os motoboys e os que trabalhavam na rua, que faziam um pequeno desvio. Em resumo, tinha de tudo e de todos os cantos da cidade. Diferente do "mala", os outros o ajudaram a preparar e tudo começou no horário. Apresentação, leitura de um folheto, depoimento de um companheiro com mais de dois anos limpo sobre o folheto, tudo como sempre, como todo santo dia. Cantalorou em silêncio:

🎼Tédio, não tenho um programa. Tédio, esse é meu drama. Um dia eu fico sério e atiro nesse tédio🎶

Passou-se ao sorteio do direito de falar. Cada sorteado tinha sete minutos. A grande maioria dos grupos oferecia apenas 5 minutos, mas a maioria acabaria apelando para o grupo de samba mais ouvido da Irmandade: "Só Para Concluir!" Arrebentando o tempo para poder falar mais como o pai ou o patrão não o entende.

O primeiro sorteado foi um adolescente de uma turma que de vez em quando aparecia. Trabalhavam todos com assinatura de revistas e davam golpe em cima de golpe. Não parava um de pé mais que dois meses. Gostava deles, já tinha feito até umas bagunças juntos. O esquema era a maior pilantragem, algo a ver com cartões de crédito, mas simples. E dava grana. É, mas o sonho acabava quando algum deles lhe chamava de tio. As coisas mudam rápido, ou o tempo passa depressa, sei lá. Vinte quatro anos, não era mais criança. Mais ao mesmo tempo não tinha esposa, não tinha filhos, não tinha profissão ou emprego. Que lhe impedia de se perder pelo mundo, aprontando tudo que desse na telha? A mente viajava enquanto o moleque relatava as aventuras de sua última viagem e os problemas com a mãe.

Mas os relatos deles pelo menos eram originais. Boa parte era uma eterna repetição dos clichês e das frases feitas da irmandade. A cada dia percebia mais que era realmente uma "programação". Mais o firewall dos drogados era muito bom. Então a única forma de instala-la era martelando-a na cabeça.

Acordou de seu devaneios quando ela foi sorteada. Na verdade saiu de um para entrar em outro. Está certo, ela era linda. Mas não era esse o ponto. Quando ela falava saia de si, vivia o mundo dela. Mesmo ela sendo mais inteligente que a média, não era isso também. Talvez fosse a sua loucura e a intensidade que vivia tudo. Ou só o timbre de sua voz e como falava. Desta vez estava apaixonada por um companheiro HIV positivo que não parava em pé. Doida, doida, doida.

Outra coisa que estava cheio. Há um mês atrás tinha se tornado próximo de outra graciosa maluca que, mesmo sendo universitária, tinha se apaixonado por um menor de rua, e estava tentando sair da enrascada. Tardes e tardes passaram conversando. Momentos maravilhosos! Para tudo acabar em um almoço onde viu ela se desmanchar por outro companheiro na sua frente. Aquela sensação horrorosa de ter uma faca rasgando o peito. É, pelo menos foi o fulano que pagou o rango.

Será que seu dia chegaria? O dia que teria alguém. Que não dependeria de ninguém e poderia andar de cabeça erguida. Já ouvira milhares de relatos e não tinha escutado uma resposta que lhe satifizesse.

Quer saber, chega! Por um milagre tinha dez reais sobrando e nessa noite ia usar uma. Afinal de contas, quem iria saber? Enquanto pensava nestas coisas foi sorteado um companheiro que ele nunca tinha visto no grupo antes. Começou falando da felicidade de estar ali, depois de mais de dois anos. Tinha agora quatro anos limpo. Trabalhava, estudava, e estava começando à formar uma família. De férias do trabalho, podia visitar o grupo que tanto lhe ajudara no começo. Com a maior simplicidade, contou como ficara mais de um ano vindo naquele grupo, todos os dias. De que, como seu ambiente de uso era o Centro, ficava às vezes horas na Igreja da Sé antes de vir para cá. Que só ali se sentia protegido de si mesmo. E como agradecia ter conseguido um tempinho para vir para esta reunião.

Toda raiva, tédio e amargura passaram. Todo o plano louco para a noite desapareceu. Só conseguia pensar em uma coisa:"Um dia eu estarei sentado naquela cadeira! Dizendo às mesmas palavras!"

Aristoteles da Silva
Enviado por Aristoteles da Silva em 26/08/2016
Reeditado em 23/01/2024
Código do texto: T5740884
Classificação de conteúdo: seguro