Paradoxo da vida perdida
Meu Deus, ainda estou vivo. Não sei como. Mais uma vez o improvável venceu. De algum jeito cheguei na casa da Paula e ela me deixou ficar no quarto de hóspedes. Preferia o quarto dela, mas não foi desta vez. Também não sei o que aconteceu ontem a noite. Nem quero saber. Checo tudo para ter certeza de que estou sozinho. Tem um aviso na geladeira pedindo para eu não fumar dentro de casa, mas teoricamente não vi. Fiz um café forte para viagem e sai antes que ela pudesse chegar para me repreender. “Você esta fodendo com a sua vida”, ela ia dizer. “Se eu quisesse foder com a minha vida arrumava um emprego e casava com você”, eu ia responder. Acho que talvez tenha escutado aquilo e respondido isso ontem a noite. Explicaria o quarto de hóspede.
O bar do Jaime estava começando a receber o grande público. Ele fingiu que não me conhecia, e a filha dele não conseguia esconder que odiava me amar. “Meu pai não quer mais você aqui.” “Faz tempo que ele não me quer aqui, mas ele gosta da onça pintada?” “Filho da puta.” Com um copo de Campari e uma garrafa de cerveja a vida até parece que vale a pena. Peguei o Mutarelli no bolso do casaco e comecei a ler como se estivesse numa biblioteca. Era como se o mundo tivesse parado de girar e o tilintar dos copos era uma barreira contra qualquer coisa que tentasse entrar no meu mundo. Mas não foi o suficiente para parar a Sandy. “Ninguém vem aqui para ler!” “Eu não sou ninguém.” “Tenho um negócio aqui para você que vai te tirar dessa pasmeira.” “Não, obrigado.” “Tem certeza?” Ela tirou um vidro de remédio com um conta gostas e um líquido preto e viscoso. “O que é essa merda?” “Lubrificante social.” Ela pingou duas gotas no meu Campari, que ficou meio marrom, e deu uma golada. Olhei para ela sorrindo como o pote de ouro no fim do arco-íris e terminei com o que tinha sobrado.
Então o mundo mudou, apesar de continuar o mesmo.
Comecei a afundar num chão aveludado e a brasa no meu estômago virou um lança chamas. A filha do Jaime trouxe mais bebida e disse alguma coisa sobre eu ser um babaca. A Sandy estava dançando loucamente com alguém que parecia ser eu. E era. Aquela coisa preta tinha feito um outro Neb nascer e aprender a dançar, o antigo continuava sentado na mesa lendo Mutarelli em alguma outra dimensão. Ou poderia estar realizando os desejos sexuais da filha do Jaime. Numa terceira hipótese casado e com filhos na casa da Bárbara. Em algum plano ainda não descoberto pelos departamentos de física eu ganhava o Nobel de literatura e falava no discurso: “só sei ler e escrever, então tive que me virar com isso.”
Talvez, para garantir a paz entre todos no bar, seria indicado que só fossem aceitos adeptos do Lubrificante Social. Assim não haveria nenhum problema em sair caindo em cima da mesa dos outros. Em algum momento, sem razão aparente, concluí que era o Super Homem e tentei alçar voo para o infinito e além, mas fui interrompido pela ausência do supernatural e a implacável gravidade. De repente minha cara estava ao alcance de um coturno cheio de um pé com muita vontade de me chutar. Primeiro tentei me teletransportar para a nave do Capitão Spock. Quando percebi que não ia funcionar já e tinham ido boa parte dos dentes que me restavam. Me esforcei tanto para me fingir de morto que cheguei a acreditar que era verdade. O Jaime apareceu com um taco de beisebol e muitos gritos. Apaguei com a certeza de que acordaria muito melhor.
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