Felipe
Felipe
Enquanto caminha pela Avenida Paulista vê um homem sem camisa, suas costas morenas com os músculos muito definidos por conta do suor o deixam abismado. Parece uma escultura renascentista mas sem a estática e pacífica cor branca do mármore. Havia cor, havia movimento, havia vida. Abaixa a cabeça e vê que a barriga já quase lhe toma por completo as pernas e os sapatos. Se parasse de andar, veria apenas as pontas lustrosas e negras do seu sapato de couro barato.
Essa merda que parecia triturar seus pés.
Que calor. Está suado tanto quanto o homem que acabava de ver. Mas, diferente dele, não parecia uma estatua renascentista cheia de vida. Muito pelo contrário. Estava patético. Seu rosto inchado estava vermelho. O odor do suor se misturava com o do desodorante barato criando um híbrido grotesco. Começou a se indagar por que diabos tinha que usar ternos pretos, grossos, pesados e insuportáveis em um lugar onde em que 75 por cento do ano a média é de 30 graus.
Isso era um absurdo, tudo era um absurdo.
Virou para um lado e viu a turba de gente que andava sem sentido. Ficou imaginando o que seria delas se um dia o trabalho simplesmente desaparecesse da face da terra, provavelmente se matariam. Restaria uma quantidade mínima de seres humanos no planeta.
Sua garganta começou a se fechar. Parou no meio da calçada. Esperou os inevitáveis trombos que não vieram. Nem para obstáculo servia. As pessoas conseguiam desviar de seu corpo estático e ensopado de suor sem ao menos lhe olharem a cara. Afrouxou a gravata e desabotoou um botão da camisa, mas mesmo assim o ar parecia se recusar a vir até seus medíocres pulmões destruídos pelo cigarro.
Esse sempre foi um refúgio, um momento em que podia ter paz.
Ultimamente nem mais fumar podia, sempre que acendia um cigarro na rua era hostilizado. Como se o que causasse câncer fosse um pequeno palitinho de tabaco enrolado e não uma caralhada de carros numa concentração nunca antes vista na história humana.
As pessoas tem preconceito com fumantes hoje em dia porque quando você para para fumar você simplesmente para.
Por um instante que for você tira o lodo grotesco que as pressões sociais, bancárias, familiares lhe jogam. E quando você tira esse lodo em público, as pessoas se irritam pois vêem o absurdo em que estão absortas. As mentiras e a insignificância de sua vida esforçada e desesperada.
Isso é impensável, insuportável!
Ócio leva à criatividade, e criatividade leva à arte, e arte leva à critica e à compreensão, e crítica e compreensão levam à destruir mentiras que sustentam pessoas poderosas e nações.
Isso é inaceitável!
É preciso estar em constante trabalho e em constante aperfeiçoamento técnico para impedir isso. O calor e o suor aumentam. Agora as pessoas buscam trombar nele. Dão lhe até pontapés e socos. O bafo produzido pelo terno é insuportável. Arranca-o mas logo sua pele começa a queimar. Os sapatos encolhem e o cinto parece querer cortá-lo em dois. O telefone grita, machucando seus ouvidos . O ar foge dos seus pulmões. Tenta gritar, força a garganta e sente as cordas vocais estourando, mas ninguém o ouve, nem ele se ouve. Todos os grandes prédios espelhados se dobram sobre ele e o calor refletido por suas colossais fachadas começam a derreter o asfalto. Ele vai afundando. A pele misturada com a camisa branca e fina borbulham.
Não deveria de ter tirado o terno. Não deveria de ter tirado a gravata e desabotoado a camisa.
Todos agora passavam calmamente por ele. Não mais lhe davam trombadas, socos ou pontapés. Ele gritava e se debatia enquanto afundava cada vez mais. Ninguém o via ou ouvia. Os fones de ouvido talvez abafavam seu som e os celulares faziam seu papel de desviar a atenção. Ninguém merecia em plena quarta feira ter de ver ou suportar uma coisa absurda como essa. Só lhe restou a cabeça que era pisoteada e xingada quando alguém propositadamente tropeçava nela. Cena patética e totalmente desnecessária. Ainda bem que as pessoas não tiveram de gastar seu tempo lidando com um absurdo desses, já que nada disso existiu. O mundo é um lugar pleno e tranquilo.
Sim, o mundo é um lugar pleno e tranquilo.