Uns rabiscos, uma caixa
Uma caixa de papelão. Os desenhos já desbotados cobertos por uma fina camada de poeira. Nas bordas, decomposição e manchas escuras. Não há como vencer o tempo. Esse senhor que fere os objetos que ousam deixar seus rastros. Não perdoa sequer uma inocente caixa.
Sopro a poeira. Retiro o que ainda resta com a palma das mãos. Há letras rabiscadas por todo o papelão: uma mescla de pequenas e grandes letras de formas. Garranchos, eu diria. São as minhas letras misturadas as de minha vovó. Eu a chamava assim desde que me ensinaram que era minha bisavó. Como criança, pensava que se ela era Bis-avó, então era minha VÓ duas vezes. Pois que assim estava então decretado: VOVÓ.
Sempre que minha mãe dizia que iríamos visitar a casa da vovó, levava comigo o piano que meu vô havia me ensinado a tocar. De Dó-re-mi-fá a brilha, brilha estrelinha: as típicas músicas infantis. Era o que sabia tocar. E enquanto tocava, me sentia o Mozart das criancinhas, ainda que minha plateia fosse uma senhora de 80 anos, já quase sem dentes, a me admirar.
Certa vez, vovó me perguntou o que havia escrito na caixa (a fatídica frase para mim: piano infantil). E fiquei surpresa ao saber que vovó não se inteirava às letras. Não compreendia como um adulto poderia não conhecer as letras. Na altura dos meus oito anos, achava que entendia o suficiente e decidi que faria uma coisa: ensinaria minha vovó a ler e a escrever.
PIANO. CASA. CRIANÇA. VOVÓ. GATO. São algumas das palavras que meus dedos contornam na caixinha envelhecida. Quando decidi ensinar vovó, custei a encontrar uma caneta, mas papel... Papel não havia. Pois que tive então a brilhante ideia: escrever na caixa do meu piano infantil. Aprendi a tocar o piano com meu vô. E seria na caixa do piano que ensinaria vovó a, primeiramente, escrever.
Havia sempre uma letra não tão desajeitada – muito provavelmente a minha – acompanhada de inúmeras palavras iguais a essa. Era assim que ensinava vovó. Os dedos estremeciam, não sei se de nervoso ou pela idade. Qual fosse, as letras saíam todas tremidas. Mas saíam. E não havia nada que me encantasse mais ao ver aquele rosto já tão marcado pelo tempo se abrir num sorriso que parecia de uma criança aprendendo o BÊABÁ da vida.
Quando voltava pra casa depois do primeiro dia de lições, minha mãe se deparou com a caixa toda rabiscada. A cara de espanto. Já me preparava, então, para uma bronca. A bronca não veio, mas uma pergunta sim: “por que você está escrevendo na caixa?” “Ah! Estou ensinando vovó a escrever.” Minha mãe começou a sorrir, jorrando as palavras: “vocês crianças têm cada ideia...”
Ficava sempre ansiosa para a chegada da visita à casa da vovó. Eu sentia sim saudades. Mas a expectativa maior era o compromisso firmado: vovó deveria aprender a escrever sem minha ajuda. E não aceitaria que vovó não soubesse, ao menos, assinar o próprio nome.
GUIOMAR. Conto 57 escritos. Talvez tenha perdido algum. Talvez tenha contado o mesmo mais de uma vez. Cinquenta e sete. Do outro lado da caixa, a palavra já não está mais tão tremida. Pois que vovó já não tremia tanto mais. Sentia-se segura em escrever aquilo que a fazia ser quem era: seu próprio nome.
Não esqueço do dia em que, empolgada, gritei minha mãe para que viesse até a sala de estar, onde havia nossa “improvisada escola”. “Olha, mãe, olha! Vovó já sabe escrever, sozinha, o próprio nome”. Minha mãe só sabia sorrir e com certeza se lembrou de como crianças têm cada ideia. E, por sinal, ideias boas.
Os anos foram passando, minhas visitas à vovó diminuindo. Não consegui ensiná-la o quanto gostaria. Mas vovó sabia assinar o próprio nome. Sozinha. E quando chegara a hora de sua morte, levei comigo o piano em sua caixa. Em despedida, comecei a tocar todas as musiquinhas de quando mais nova, enquanto lágrimas escorriam até chegar à boca que se abria em um sorriso: de orgulho, de saudade, de dor.
O piano estragou uns anos depois e a caixa... Fui insistente com minha mãe: jogá-la fora de jeito algum. Fosse uma caixa velha, de papelão, era a caixa da maior glória de minha vovó: GUIOMAR.