CORSÁRIO*

Sentado sobre a grama, sentindo a brisa do mar que soprava com força, olhava para o mar agitado à sua frente. Ao longe, no céu, um helicóptero dos bombeiros passava devagar de um lado para o outro. Pensava distraído em como seria muito melhor se eles fossem vermelhos, em vez daquela mistura de cores que transformava os veículos da polícia de São Paulo em carros alegóricos. Um pequeno sorriso se formou em seus lábios. Essa tirada era do Henrique. Ele era mestre nestas ironias. Dizia que para ser um comediante famoso só lhe faltou ter nascido judeu, pois fraco e esquisito já era. Grande verdade! Lembrou-se de quando se conheceram. A sua mãe foi trabalhar na casa dele logo que o seu pai morreu. Vivia já há alguns anos numa rotina de troca permanente de casas. Apesar de ter apenas 10 anos, entendia a dificuldade que ela enfrentava. Sem nenhuma qualificação profissional, sem companheiro e sem família, vivia de subemprego em subemprego, morando eles assim também em sublugares. A oportunidade era ótima. Cuidar de uma casa enorme e da criança, pagando uma espécie de aluguel pela edícula dos fundos, para a patroa não ter problemas trabalhistas. A Dona Fátima era uma senhora loira, baixinha e magrinha, parecia que qualquer vento poderia levar. Henrique, seu filho, não era muito diferente. Logo foram avisados que ele sofria de uma doença grave no intestino, sendo o cardápio bem específico. Durante todo o tempo que morou ali qualquer oportunidade de fugir daquela comida insossa não passava batida.

Os colegas que tinham vindo com eles para a praia, evitavam se aproximar. Melhor assim. Quantas e quantas vezes enfrentara infindáveis mutismos do Henrique. Ele era capaz de passar horas olhando para o nada, mesmo sofrendo dores que ele não era capaz sequer de imaginar. O mesmo acontecia nas suas decepções ou "ensimasmentos". Era uma agonia para a mãe dele e para ele também. De alguma forma estranha desde que se conheceram se tornaram melhores amigos, mais que irmãos. Estava na segunda série e era praticamente analfabeto. Henrique também estava atrasado, mas por conta das constantes ausências. Sentava ao seu lado na escola e, em casa, passava muitas horas lhe ensinando. Sempre com paciência e sem arrogância. E se alguém podia se dar o direito de ser arrogante era ele. Sempre sabia muito mais do que os professores. Herdou uma biblioteca imensa que leu inteira. E precisou de novas estantes para abrigar os que acrescentou a ela. Nunca tivera tamanha admiração por alguém como por aquele menino tísico. Sofria por não poder trazê-lo para nenhuma das coisas que gostava. Bola, bicicleta, brincadeiras, nada. A única atividade física que compartilhavam era a natação. A mãe dele pagara também para ele. Moravam na zona rural de uma pequena cidade. Estudavam na cidade e três vezes por semana ficavam até a tarde para as aulas. De vez em quando iam até a represa da cidade, que ficava perto. Nadava bem o moleque, e essa era a merda! Uma hora ou outra ele sempre o desafiava para "ver quem ia mais longe". Nunca ele ganhou, mas perdeu a conta das vezes que teve que trazer o amigo carregado, ou que ele quase se afogou. Apesar da preocupação, sempre concordava em fazer de novo. Nessas horas percebia a imensa dor que as limitações deviam trazer para ele. E a sua coragem. Nas vezes que dava tudo certo, Henrique deitava sobre uma pedra, os olhos perdidos no horizonte ou no céu, e cantava uma música antiga sobre o mar. Seu rosto resplandecia, como encantado...

Ele era internado de tempos em tempos em um hospital universitário da capital, para tratamento da sua doença. Ele, em contrapartida, via crescer em si um homem com um corpo excepcional. Sem ser fanático por nada, procurava fazer de tudo. Assim chegou aos 17 anos. Sabia jogar razoavelmente futebol, volley e basquete. Entendia um pouco dos ofícios de pedreiro, pintor, encanador e eletricista. Fazia pequenos bicos que lhe rendiam o suficiente para não ter que pedir nada para sua mãe. Nesta época tanto ele quanto o Henrique foram infectados pelas artes cênicas. Péricles, um daqueles grandes artistas frustrados que se encontra em qualquer cidade do interior, estava montando uma companhia teatral. O amigo ficou extremamente animado, ele entrou meio que para protegê-lo. Mas todo o ambiente, o montar de um palco, a modelagem de um texto para apresentá-lo, atuar, e a lábia do diretor, também o conquistaram. Graças a influência de um vereador conseguiram plataformas de madeira. Elas permitiam montar um palco que ocupava metade de uma sala de aula. Todo ele tinha que ser montado, junto com o cenário e a iluminação, à partir da sexta após a última aula da noite até o horário de apresentação no sábado. E ser desmontado após ao término da peça no domingo para a aula de segunda. Ver um mundo novo surgir tão rápido e da mesma forma desaparecer era mágico. Descobriu um talento e um prazer único. E sua admiração pelo Henrique aumentou ainda mais. No começo apenas seguiam Péricles sem darem palpites. Mas rapidamente, graças aos conhecimentos e talento dele, assumiram o empreendimento. Ele parecia simplesmente saber tudo de teatro, cinema, cenografia, música, iluminação. E conseguia casar isso tudo em um todo incomparável.

A primeira peça que encenaram foi uma adaptação dele de Medéia, de Euripedes. Com três atores apenas! Simplesmente primorosa! Conseguiram um público razoável. Três meses depois, véspera de eleições municipais e com a comunidade abalada por um problema ambiental, encenaram uma adaptação dele de Um Inimigo do Povo, de Ibsen. Apenas com cinco atores e totalmente adaptada para a realidade do palco e da cidade. Magistral! Sempre com ele e a Helena, amiga nerd da escola, pegando os papéis principais.

O tempo passava, a tarde ia cada vez mais alta, com os ventos ficando mais fortes e a luz mais fraca. Tinha que começar a se mexer... Que se foda! Apesar de ter escolhido ser ator, não tinha a menor vontade para representar seu "papel". Iria ficar ali sentado enquanto pudesse. Seus pensamentos se fixaram na Helena. Tão inteligente e tão problemática. Já era a única amiga do Henrique na escola, que também frequentava porque era obrigada. Apaixonada por artes, esquisita, não tinha a menor consciência da sua beleza. O que será que havia entornado o caldo no final das contas: Sua desatenção ou as paixões desencontradas da pequena trupe? Henrique e Péricles amavam Helena, que lhe amava, que não queria ninguém dali. A verdade que o talento do seu amigo podia ter superado tudo isso, mas sua doença era inexorável. Percebendo o interesse dela por ele, pela primeira vez agiu nas suas costas e adaptou Dois Perdidos em Uma Noite Suja, de Plínio Marcos. Lhe tirou de cena habilmente. Desta vez iria adaptar, dirigir e atuar. Era Tonho, o mais tímido. Péricles era Paco, o malandro. Foi incrível, a atuação deles foram impressionantes, refletindo sobre o tablado a luta pelo amor de Helena fora deles. Um sucesso absoluto! Ele saiu direto das palmas da última apresentação para o hospital. Transferiram-lhe para a capital, onde ficou internado um bom tempo. De novo aqueles silêncios tão longos com o olhar distante. Mais uma vez a vida lhe sorrira e a doença lhe passara a perna. A companhia teatral continuou, mas o "elán" se fora. Mas ele decidira ser ator e foi fazendo tudo que podia para o sonho dar certo. Inclusive se esforçar para mantê-lo no amigo. O resultado foi Henrique ter passado vestibular para Cinema e Tv em uma universidade pública um ano depois.

"Vivíamos como se fosse a aurora de um novo tempo, mal sabíamos que era o apogeu de nossos dias". Onde diabos havia escutado ou lido aquela frase? Ah, não tinha importância. Definia perfeitamente os dois anos seguintes. A Helena se tornou a namorada do único a conseguir passar no vestibular mais concorrido do Estado. O antigo diretor partiu depois de um "surto estrelístico". Ficaram tão famosos que cada peça agora ficava dois meses em cartaz e o preço do ingresso era digno da capital. Adaptou para as suas condições e realidade: A Importância de Ser Honesto e O Retrato de Dorian Grey, de Oscar Wilde; Electra, de Sófocles; Longa Jornada Noite Adentro, de Eugene O'nell e O Mercador de Veneza, de Shakespeare. Fez uma peça sobre um personagem cômico famoso que quase rendeu um processo por direitos autorais. Resolvido quando o autor assistiu a peça e a adorou, abrindo mão do dinheiro.

Faculdade, namoro, as adaptações, as montagens. As viagens de ida e volta. O entusiasmo dele era contagiante. Acompanhava-o preocupado. Vivia com medo do Henrique quebrar de novo. Pensava o tempo todo em quando isso iria acontecer. Mas tamanha era a sua felicidade... E a vida continuava, o desastre não acontecia. Enquanto na sua tudo de bom estava acontecendo. Era um tipo de estrela local, o que lhe garantia muita mulher. Ficou conhecido fora da cidade e já participava de uma peça grande. A fortuna é uma dama que, quando resolve sair com alguém, costuma querer atenção exclusiva. E, sejamos honestos, coisa chata é fazer o papel de "advogado do diabo".

Quando a crise veio, chegou com uma intensidade que nunca vira. Ficou meses internado, fez três cirurgias e instalou uma bolsa de colostomia. A namorada e amiga não aguentou dois meses e a mãe morreu em um acidente de carro enquanto ele estava no hospital. Passou todo o tempo que pôde ao lado dele. Nunca seus silêncios foram tão longos e seu olhar tão distante. A mãe havia lhe deixado uma quantia que era mais do que o suficiente para que não se preocupasse com dinheiro. Mesmo sendo fora de mão continuou morando com ele, junto com sua mãe.

Fazia um ano que o Henrique não saia de casa, só para as consultas. Retirou a bolsa faziam dois meses, mas nem isso o alegrou. Permanecia na cama a maior parte do tempo. Há uma semana pediu para ir à praia. Ele pediu para alguns amigos virem juntos. Agora se arrependia. Um bombeiro veio até onde ele estava sentado para dizer que devido ao tempo e horário teriam que parar com as buscas por hoje. Fingiu tristeza, mas por dentro agradeceu à Deus. Queria de todo coração que nunca achassem o corpo. Cantou a música dele:

"Meu coração tropical esta coberto de neve, mas

Ferve em seu cofre gelado, a voz vibra e a mão escreve mar.

Bendita lâmina grave, que fere a parede e traz

As febres roucas e breves, que mancham o silêncio e o cais.

Roseirais, Nova Granada de Espanha

Por você, meu corsário preso.

Vou partir a geleira azul da solidão

E buscar a mão do mar, me arrastar até o mar

Procurar o mar"...

Chorou ao lembrar do seu último abraço no amigo, onde lhe agradeceu o mundo que ele possibilitou. No fundo sabia o que ele queria fazer desde que lhe fizera o pedido. Henrique lhe entregou um bilhete que só leu quando a noite caiu:

"Platão dizia que o escravo merecia sua condição por preferir a vida à sua liberdade e dignidade. Adeus bom amigo!".

Aristoteles da Silva
Enviado por Aristoteles da Silva em 06/08/2016
Reeditado em 29/03/2022
Código do texto: T5720834
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