Crianças construtoras
Porto Velho, RO, 25 de julho de 2016
Éramos crianças, crianças e adolescentes sadias, livres e nossa infância não foi idealizada nem por nossos pais tampouco pela escola da época. Vivemos uma infância possível, de acordo com as condições socioeconômicas de nossos país. Brincávamos na rua sem medo de sermos atropelados, pouco era o movimento de carros, também não tínhamos assaltos. Jogávamos futebol com bola feita de meia e pedaços de pano velho. Aproveitávamos latas de doce, leite em pó, para fazer nossos carros. Enchíamos essas latas de areia, furávamos tanto a tampa como o fundo delas, passávamos um arame por esses dois buracos e em suas nas duas pontas amarrávamos um barbante. Terminada essa tarefa, saíamos satisfeitos a rolar pelas calçadas o nosso belo veículo, fruto de nossa imaginação e fabricação. O aprendizado era coletivo em meio a outras crianças e adolescentes. Olhos atentos e arregalados percebiam os mais instruídos a construírem suas máquinas de brincar. Quando conseguíamos montar algo, era euforia total.
Muitos outros brinquedos fabricávamos. Com as latas de doce marmelada, construíamos caminhões, com as de sardinha, pequenos veículos. As latas de óleo comestível serviam para a construção de tratores, com os quais aplainávamos as ruas abertas na areia de nossos quintais, depois de uma chuva, quando o solo ficava mais consistente. Construíamos longas estradas, com pontes sobre rios, túneis entre montanhas, plantávamos árvores pelo caminho, usando galhos de arbustos encontrados em terrenos próximos às nossas casas.
As caixas de papelão, que guardavam os sapados recém-comprados, eram usadas para faz ônibus, que quando velhos e imprestáveis eram incendiados. Do mesmo modo, usávamos as caixas de dentifrícios como pequenos ônibus, que também eram incendiados quando imprestáveis.
Construíamos carrinhos de rolamentos ou rolimã, usando madeira e rolamentos de aço. Contendo três ou quatro rolamentos, geralmente obtidos em oficinas de conserto de carros, seu corpo constituído de pequena prancha de madeira, montada sobre dois eixos, também de madeira, onde se encaixavam os rolamentos. Uma peça frontal móvel, utilizada para controlar o carrinho enquanto este descia ladeira abaixo, carregando seu condutor devidamente sentado na prancha de madeira, servia de guidom. O pé, geralmente calçado com chinelo de borracha, desacelerava o brinquedo. Era perigoso, mas excitava e divertia. Não sei a origem, acredito que do Brasil e surgiram no final da década de 1950. São precursores dos skates da atualidade.
De pequenas latas de conservas, construíamos telefones. Duas latas ligadas por barbante bem esticado, transportava a voz emitida de um dos lados para o outro, permitindo que a pessoa do outro lado ouvisse a voz do amigo. Os pés de lata, outra brincadeira que usávamos utilizando latas, eram amarrados cordões em cada lata para que as crianças pudessem andar de um lado para o outro em cima delas. Os cordões precisavam estar bem presos na lata, para que elas não caíssem.
Estendíamos as nossas alturas por meio de duas pernas-de-pau, fabricadas com duas hastes de madeira, onde fixávamos dois pequenos degraus, à determinada altura, que serviam de apoios para os pés. Nos equilibrávamos segurando com as mãos, a parte superior das hastes de madeira, o que possibilitava andarmos de um lado para outro. Algumas vezes fazíamos corridas utilizando essas pernas-de-pau.
A PeŽteka (bater, em tupi), para nós Peteca, já era de uso por crianças indígenas quando os portugueses aqui chegaram. Uma trouxinha feita de folhas com pequenas pedras inseridas, amarrada à uma espiga de milho, fazia a alegria dos indiozinhos das aldeias. A brincadeira foi passando de geração em geração e na minha época de criança, eram feitas de uma película – napa – fina e macia, de cores variadas. Costurada em forma circular, representando a sua base concentrava o seu maior peso. Dessa base saía uma extensão feita de penas naturais. Jogávamos tentando equilibrar a peteca no ar, quando arremessada. Em casa elas eram produzidas de pano, na forma de pequena trouxa enchida com pano e um pouco de areia, para conferir peso à base. A extensão das penas – geralmente de galinha – era amarrada com barbante à essa trouxinha.
Um dos brinquedos mais populares e que a sua confecção muito fascinava as crianças e ainda hoje fascina, a pipa, que no Brasil leva diferentes denominações, dependendo da região: pandorga, papagaio, arraia, raia, quadrado etc. De origem oriental, foram trazidas para o Brasil, pelos portugueses. Elas eram feitas a partir de talos de folhas do coqueiro, que após secos adquiriam dureza e flexibilidade, possível de serem curvados para formar suas estruturas, cujas mais simples podiam ser de três talos, em forma de cruzeta, ou de quatro talos, formando um hexágono. A sua sustentabilidade era dada por essas armações fixadas por linhas de costura e revestidas de folhas de papel. Havia um rabo, ou rabiola, feito de pequenas tiras de pano presas a uma extensão de linha, amarrado ao conjunto, dando aerodinâmica e equilíbrio às pipas.
Roda Pião, brincadeira muito ao gosto das crianças e adolescentes de minha época. Para fazer um pião era preciso ter habilidade com madeira, ferramentas de corte e alisamento. Partia-se de um tronco de árvore de madeira dura e seca, com mais ou menos 15 cm de diâmetro. Ia-se trabalhando a madeira, tendo o cuidado de não a ferir, até deixá-la na forma cônica. Colocava-se uma ponta de metal fixa na parte mais fina do polígono, para que ele pudesse rodopiar firmemente no chão. Esse movimento giratório era conseguido jogando o pião ao chão e puxando fortemente o cordão nele enrolado. A grande diversão era observar o pião rodando, além de participar de sua fabricação, quando crianças com mais idade ensinavam os mais jovens os segredos dessa fabricação. Competições eram realizadas jogando-se vários piões – um de cada vez - em um círculo desenhado no chão, e cada competidor, na sua vez, procurando tirar fora do círculo o pião do competidor adversário. Também se fazia malabarismo com essa peça de brincar, apanhando-o do chão enquanto ele rodopiava e fazendo-o rodar na palma da mão
Fazíamos bonecos a partir de sabugos de milho e os vestíamos com as palhas do milho. Depois presenteávamos as meninas, as quais tínhamos mais simpatia.
É claro que havia os brinquedos fabricados industrialmente, que nas casas de algumas crianças só apareciam na noite de Natal, ou para àqueles mais abastados, também no dia do aniversário do sortudo. Mas eles não eram instrumentos de nossa cobiça, pois o importante era brincar com o que construíamos. Uma satisfação sem igual. Hoje, lembramos dessa época com satisfação e saudade. Infelizmente nossos filhos não experimentaram e nunca experimentarão esses prazeres.