LONGA JORNADA NOITE ADENTRO-O CONTO*
Esperávamos ansiosos o final da aula. Eu, a Luciana, o Mezetti e o Bruno. Olhávamos para eles, impassíveis, ao lado do bebedouro. Os quatro tablados de madeira! Todos os dias; pela manhã, no intervalo e na hora da saída, eu os vinha admirar e repetir meu pequeno mantra pessoal: Sobre vocês me erguerei como um novo homem!
21:50hs. Faltavam apenas dez minutos. Nada do Nálio aparecer. Ele era o coordenador e ator principal da nossa companhia teatral. Essa era a nossa segunda peça. A primeira tinha sido um sucesso estrondoso. Tudo com um texto semi-desconhecido do professor/vereador da cidade que nominalmente era o diretor da trupe. Tá, a peça dele havia sido premiada. Mas isso há 13 anos atrás! Só fora montado uma vez antes. E proibida pela censura na quarta apresentação. Foi uma aposta muito arriscada.
Mas brincadeira de criança comparada ao que eles iriam fazer agora. Greta Garbo, Quem Diria Acabou no Irajá, de Fernando Melo. Marco da cultura GLS do final da década de 60. Mas ao seu ver, ainda continuava muito avançada para Nazaré Paulista do final dos anos 80. Mas aquela porra tinha que dar certo! Tinham me prometido o papel principal na próxima. Estava com 17 anos. Havia sido uma completa nulidade até agora. Essa era a minha última chance de fazer algo memorável na adolescência. Só que como sempre, estava saindo tudo pela culatra. Na primeira produção da companhia atuei como um moribundo que deveria gemer em momentos específicos. Por duas vezes dormi e acabei gemendo na base do pontapé. Virei motivo de chacota na trupe e em casa. Vendi ingressos para toda a família. Em uma das apresentações o público era praticamente só de parentes meus. Meu pai, sempre galhofeiro, não perdoou: Porra! Te vi dormindo a vida inteira. Agora você me faz pagar para isso!. Mas entendia de teatro como ninguém. Conhecia a obra completa dos gregos. E vários outros: Willian Shakeaspeare, Tenesse Willians, Henry O'Neal, Nelson Rodrigues, Plínio Marcos, Ibsen e vários outros. Nunca pedi roupas caras, tênis da moda, nem nada que a molecada normalmente pedia. Mas não dispensava minha ida para São Paulo duas vezes por mês para ir no cinema e no teatro.
Finalmente soou o sinal de término das aulas. Nem esperamos todos os alunos saírem para irmos retirando as cadeiras. O último ainda estava ali quando pegamos a mesa. E nada do Nálio. Saco! A porcaria dos tablados eram pesados para caramba. Mas precisava impressionar:
-Bruno, vamos colocar os tablados para dentro?
-Você está louco. Estas coisas são pesadas para burro, dão o maior trabalho para passar pela porta. Depois a gente coloca de algum jeito que eles não querem e ainda leva xingo. Não, obrigado.
-Eles devem estar repassando a peça. Vai, a gente consegue. Você é forte.
Graças a Deus o Bruno estava a fim da Luciana e não ia querer dar uma de fracote na frente dela. Vai entender os mistérios do coração. Eu estudava com ela desde a quinta série. Eramos os nerds da sala. Quantas tardes passei na casa dela vendo algum filme "inteligente". Ou em conversas sem fim sobre tudo e sobre o nada. Vi aquele corpo amadurecer. E emprestei meu ombro para muitas decepções. Amorosas e da vida. Apesar de achá-la linda, não conseguia vê-la como nada mais do que minha melhor amiga. Mas assim funcionava nossa trupe: Bruno, que amava Luciana, que amava Nálio, que amava Francisca, que amava Homero, que devia amar alguém, mas este não era mulher. E eu que não amava ninguém, só queria uma chance de deixar de ser um zé ninguém. Dá certo. Com muito esforço, e várias paradas, conseguimos levar os tablados para dentro da sala. O Mezetti, nosso técnico e o menor de nós, vai para baixo e começa a amarrar os pés de madeira uns nos outros com arame para dar estabilidade ao palco.
Merda! Na minha ansiedade esqueci de varrer a sala e passar um pano. Os outros não estiveram na montagem do palco da última vez, não sabem que esta é a primeira coisa a fazer. Vou atrás de vassouras, baldes e panos e começo a varrer a parte que deverá ser a platéia. O resto do povo me acompanha. Tudo ficou um brinco rapidinho. Assim que terminamos, Bruno e o Mezetti foram tirar as cortinas brancas para colocar as escuras e eu e a Luciana fomos passar pano em cima do tablado.
00:10hs. Nada deles ainda. Começamos a instalar a parte elétrica. Iluminação de fundo, a travessa no teto onde ficam os holofotes, o painel de controle de luz e de som. Quando finalmente terminamos eles chegam. O Nálio, A Francisca, o Homero e o Machado. Felizes, rindo. O pobrezinho do Mezetti está com o nariz tampado e espirrando sem parar de ficar mexendo no material elétrico empoeirado que arrumaram para nós. O Homero chega perto dele:
-Você está doente, menino?
-Não, é alergia ao pó mesmo.
-Come uma bicha que passa, lindo!
O coitado ficou rubro. O cara era um loiro de mais de 1,80m, com presença. E uma tremenda de uma biba com complexo de estrela. Não levantava um dedo para nada. E todos faziam festa para ele.
Resolveram que deviam fazer um ensaio geral, aproveitando que o palco estava montado e assim fazendo as marcações. A grande merda é que faltava colocar o tapete, os móveis e os compensados que formariam as pequenas coxias laterais. Eles iam levar umas duas horas ou mais. Tempo que ficaríamos parados. E já eram 01:00h. Mas não tinha como discutir. Eram as estrelas. O Homero e o Nálio sobem no palco enquanto o Machado e a Francisca e o Machado pediram que trouxéssemos duas cadeiras.
Nálio é o enfermeiro homossexual que tenta seduzir o caipira que chega a cidade grande, interpretada por Homero. Machado vai pontuando a ação dos dois. Meu Deus, os dois eram incríveis. Depois veio a cena onde a Fernanda participava como uma prostituta namorada do caipira. Ela, apesar de ser sua primeira peça, também estava primorosa. Ninguém podia acusa-la de estar sendo favorecida. Mas coitado do meu amigo. A mulher era um espetáculo. Loira, alta, gostosa, popular. Ele não tinha chance. Olho para a Luciana. Ela está boquiaberta com a atuação dela. Me deu dó. Como competir com uma mulher que, além de linda, é inteligente e talentosa também. Por fim a última cena da despedida dos dois protagonistas masculinos. Não havia como mover os holofotes durante a peça, então estes já teriam que ficar posicionados. E eles ensaiaram sem os móveis, sem os compensados que serviriam como coxias. Bem, meno male que nos escutavam. Foram embora 03:20hs.
E lá fomos nós trabalhar. Em uma hora e meia se erguia na nossa frente a sala de um apartamento, com duas poltronas colocadas uma em frente a outra, uma imensa foto da Greta Garbo na parede, um vaso como decoração. as coxias funcionando uma como porta de entrada e outra como a de um quarto. Um palco onde sete horas atrás era uma sala de aula. Testamos as luzes e o som. Perfeitos. O Mezetti e o Bruno se despedem. Provavelmente só voltam no final da tarde. Me sento com a Luciana em uma das poltronas:
-E você moça, não vai voltar para casa?
-Se eu for agora não consigo vir a noite. Percebo a tristeza em sua voz. Pego na sua mão.
-Você gosta mesmo dele, não é?
-Muito. Mas hoje eu vi que não tenho a menor chance.
-Hahaha. Você pode se consolar com o fato que ele também não.
-É verdade. Nossa, como ela é boa, não é?
-Em todos os sentidos. Meu Deus, o que é aquilo!
-Tá bom, não precisa humilhar. Mas não é só isso. Foi um sonho bobo.
-Ele te convidou para o papel, você que não quis. E você é linda também. E talentosa. Adaptou o texto para nossa época e para o ambiente paulistano. Se fosse para usar o texto original não ia dar certo.
-Eu iria morrer de vergonha atuando. Meu negócio é literatura.
-Verdade. Você me indicou os melhores livros que já li. Sem saber bem o porque me inclino para beijá-la na bochecha. Ela se vira e me oferece a boca. Quando percebo estamos nos pegando com uma sofreguidão que eu nunca sonhei que ela tivesse. Sei que estou sendo usado, mas pouco me importo. Deitamos sobre o tapete e deixo de ser menino.