(Continuação do conto 'Anabell' de Priscila Pereira)

Anabell voltava do trabalho para casa por um caminho novo, caminhava a passos lentos, analisava as casas, os transeuntes, a rua de paralelepípedo, as árvores, o céu... Sentia emergir, como bolhas borbulhando em água quente, a imagem da velha que lhe vinha à consciência como fortes marteladas tirando-lhe a calma dos passos, que se apressavam para o lar, ou para aquilo que ela chamava de lar. Avistou num relance de olhar, entre uns lixos que se amontoavam dentro de uma caçamba, um livro velho e parou para pegá-lo, alegrando-se. Gostava de ler. Era pensadora e imaginativa. Um sorriso se abriu no rosto. Pegou o livro, algumas páginas estavam faltando, olhou com curiosidade, levemente passando os dedos pela capa. Folheou alguma páginas passando os olhos rapidamente e o enfiou no casaco. Assim seguiu para casa.

Chegando em casa Anabell percebe que a velha dormira, e alegrou-se por não ter que ouvir aquela voz bolorenta, impregnada de pigarra. Se dirigiu direto para sua cama, deitou e abriu o livro.

“E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: "Esta vida, assim como tu a vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes; e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indizivelmente pequeno e de grande em tua vida há de retornar, e tudo na mesma ordem e sequência - e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio.

A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez - e tu com ela, poeirinha da poeira!"

Ao ler estas palavras refletiu-as intensamente fazendo uma retrospectiva de sua vida até aquele momento. Percebendo a situação em que se encontrava, Anabell estremeceu ao perceber a miséria da vida que levara até ali – não que ela já não soubesse, mas com esse pensamento tudo ficou mais intenso, mais pesado, ao ponto de ressentir sua vida inteira. Os momentos ruins e bons de sua vida, especialmente os ruins, passavam-lhe pela cabeça. Lembrava-se da dor de se ver perdida da família, do pai entregue a bebida, de ter que aguentar a velha ressentida; da dor que ela ainda sente, e viu-se mergulhada numa vida totalmente angustiante e vazia.

Voltou a abrir o livro com um frio na barriga.

"Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse; a pergunta, diante de tudo e de cada coisa:

"Quero isto ainda uma vez e ainda inúmeras vezes?"

Pesaria como o mais pesado dos pesos sobre teu agir! Ou então, como terias de ficar de bem contigo mesmo e com a vida, para não desejar nada mais do que essa última, eterna confirmação e chancela?"

Estava tão assombrada com esse pensamento que parou a leitura para refletir. Seus pensamentos pareciam ter ganhado mais relevo, mais peso.

“Como aceitar isso? “ perguntou-se a si mesma pensando na própria vida. Sentiu angústia ao olhar para os objetos ao seu redor, sentiu repulsa da cama onde dormia, e uma náusea lhe revirava o estômago ao lembrar da velha e de sua triste condição de vida.

Devorou o livro naquela mesma noite de. No dia seguinte, no domingo, despertou com a voz velha que a chamava rudemente para que se levantasse e fosse buscar algumas coisas no mercado. Sem contrariar, tranquila, levantou-se, escovou o dentes, vestiu seu casaco, pegou o dinheiro com a velha e saiu sem dizer uma palavra. Sair de casa sempre foi para Anabell um passatempo.

No caminho lembrou-se do homem que viu tocando gaita dois dias atrás, quis ouvi-lo tocar mais uma vez e seguiu esperançosa que ele estivesse lá. Lembrava constantemente de algumas passagens do livro, sempre com uma espécie de pesar nos pensamentos, sempre com a responsabilidade de fazer de sua vida dali em diante a melhor possível.

“Quero isto ainda uma vez e ainda inúmeras vezes?" - Lembrou-se dessas palavras enquanto pensava em como amigar-se com a vida. Seus pensamentos moviam-se livremente, ganhavam mais profundidade, formando uma compreensão profunda, ainda que apenas como uma impressão intuitiva, do que aquele pensamento queria lhe mostrar. Chegou ao cais mas ele não estava. Passou direto, olhando para os lados para ver se o via, e foi comprar as coisas que a velha pedira.

Voltando viu um cachorrinho que perambulava ali próximo mancando, sua pata estava quebrada, procurava nos lixos alguma coisa para comer e Anabell deu-lhe um pedaço do pão que comprara. O cãozinho comeu com avidez, estava faminto, e ficou olhando para ela abanando o rabo com olhos de quem esperava mais.

“Não posso te dar mais. Senão a velha me mata”, disse ela ao cãozinho. Afagou-lhe a cabecinha e saiu. Este veio atrás, trotando em pulinhos. Anabell não se importou e deixou que o cãozinho a seguisse.

“Sansão! - um assovio veio de trás - “aqui garoto, aí está você, seu fujão”. Anabell se virou e viu que era o homem que tocava gaita. Seu coração acelerou.

“Então você conheceu o Sansão? Ele ia até a sua casa, moça, se deixasse. É um sem vergonha. Some sempre da minha vista.”

“Sim”, disse Anabell, “ele é um fofo. O que aconteceu à pata dele?”

“Ele foi agredido pelo dono de uma vendinha que o pegou roubando comida de seu estabelecimento”.

“Hm...” disse Anabell sem saber mais o que dizer.

“Eu me chamo Pedro” disse estendendo a mão. “Passas sempre por aqui, não? Lembro da última noite que a vi. Você se lembra?” Como poderia ela esquecer, se sua mente insistia em reviver a mesma cena todos os dias. Pedro andava a espreitá-la com os olhos desde a primeira vez que a viu. Perguntava-se se um dia teria a chance de conhecê-la, mas aguardava o momento certo. Sentia-se atraído por ela.

“Sim. Já o vi algumas vezes. Eu me chamo Anabell. Confesso que fiquei a escutar-te a tocar dá última vez que o vi. Fiquei maravilhada. Você mora aqui perto?”

“Sim. Vivemos numa casinha velha nos fundos da cidade, mas passo parte do meu tempo na rua tocando, arrecadando umas moedas ali, outras aqui, quando pensa que não – foi-se o dia e chega a noite e meu chapeuzinho está cheio de moedas. Dá pra sobrevivermos muito bem com o dinheiro. Somos somente eu e o Sansão mesmo; que qualquer hora vai acabar sumindo com essa mania de seguir todo mundo”, e deu uma risada descontraída.

Anabell via naquele homem uma leveza da qual ela não tinha, sorria sempre que falava, lhe parecia ter um aspecto despreocupado e indiferente em relação aos problemas da vida. O oposto dela.

“Bom, foi um prazer conhecê-lo. Preciso ir agora”, disse Anabell.

“O prazer foi meu, magina. O Sansão também gostou, olha a cara dele de feliz. A propósito, você tem um nome maravilhoso, Anabell”. Ele falava com tanta naturalidade que a deixava confortável. Anabell se virou e soltou um sorriso tímido, como que cheio de esperança. Queria que aquele momento se perpetuasse, queria agarrá-lo e não soltar mais. Sentia sua vida mudar desde quando achara aquele livro. Foi então que de súbito entendeu o que aquele pensamento dizia: Viva a tua vida de maneira que queira repeti-la infinitas vezes.

Chegou em casa ouvindo as reclamações da velha. Ela adorava reclamar, estava cansada de si e da vida, e agora definhava num ressentimento profundo por tudo. Anabell não queria se tornar uma pessoa amarga. Será que aquela senhora não vivera uma vida autêntica e por isso hoje se ressente consigo mesma? Por mais miserável que a consciência de Anabell dissesse que sua vida fosse, seu desejo de buscar as pazes com a vida só aumentava, e a velha passou a ser um estímulo para o que ela não deveria ser. Entrou e foi deixar as compras na cozinha. Preparou um café e levou o pão para a velha que esperava afundada num sofá tão velho quanto ela. Só saía de lá para ir ao banheiro. Cheirava a mofo onde ela sentava.

“Aqui está seu café” Deixou-o numa mesinha em frente a velha, que apenas a olhava com ar de desprezo, e foi se retirando, mas parou de repente e disse: “Ah, esqueci de dizer. Como hoje é minha folga, irei ao cais para passear um pouco”. A velha lhe dirigiu um olhar fuzilante, ainda mascando o pão disse: “Preciso que me ajude. Você tem que arrumar essa casa, está uma bagunça. Ora bolas! Só me faltava essa agora. Eu te dou um teto, você me paga fazendo os afazeres de casa”

Anabell ouviu tudo em silêncio. Pensou: “eu quero viver isso mais e mais vezes?” Lembrou-se de sua vida até ali, tinha de mudar sua situação. Imagine viver isso infinitas vezes? Ou a vida seria um horror ou Anabell fazia as pazes com sua própria vida. Mas sentiu na hora o peso deste pensamento quando se tratava de cortar a raiz do que lhe fazia mal. Sentia as correntes de anos de condicionamento lhe prendendo. Mudar exigia coragem e força. Seu coração, em silêncio, dizia que não queria mais viver daquele jeito. E com uma firmeza que ela nunca tivera, protestou ao pedido da velha, retirando-se indiferente aos berros catarrentos da velha insuportável.

Chegando ao cais avistou de longe Pedro e Sansão. Ele a reconheceu e acenou, Sansão veio ao seu encontro abanando o rabo.

“Olá Anabell. Voltamos a nos ver mais rápido do que eu esperava”, disse Pedro, retirando do bolso uma gaita vermelha. “Você me esperava?” perguntou Anabell. “Sim. Te espero passar aqui todos os dias. Eu a vejo faz bastante tempo passar cabisbaixa, perguntava-me o que se passava com você. Está sempre com um aspecto abatido.

“Minha vida não é muito agradável” disse Anabell.

“Como pode dizer isso? Disse Pedro. “O que está a chamar de vida? Pois a vida é agradável por simplesmente existir. As vezes nós confundimos nossa situação de vida com a nossa vida, e culpamos a própria vida por causa de nossa condição”

Anabell ficou sem resposta, pois seu pessimismo em relação a si mesma ficou mais destacado depois de escutar essas palavras. Notou o quão ressentida estava com a própria vida e sentiu uma certa proximidade com a velha bolorenta. E teve medo de ficar igual a ela.

“Você tem razão. Temos medo por sermos responsáveis pela nossa vida. Temos medo porque somos responsáveis. Eu li um livro que achei no lixo esses dias e que falava mais ou menos sobre isso. Sobre pensarmos a nossa vida sobre uma perspectiva de retorno eterno. Já imaginou que peso insuportável?”

“Mas por que pesaria? Poderia ser uma dádiva”, disse Pedro.

Ao ouvir isso seus pensamentos começaram a mover lembranças de sua vida miserável, sentia-se uma vítima da vida. Sentia-se incapaz contra o mundo.

“Como deseja viver, Anabell”?, perguntou Pedro, tocando algumas notas falsa na gaita e olhando para o céu.

“Quero ser feliz”, disse Anabell.

“Então seja, você pode fazer isso agora. Apenas não tenha medo de arriscar nada. Meus pais me abandonaram quando eu ainda era pequeno, deixaram-me na responsabilidade de uma família rica. Eu cresci sendo muito bem educado, mas minha vida era-me vazia. Eu vivia carregando a vida que outros queriam que eu vivesse. O dinheiro comprava tudo, meus pais eram gananciosos por status e dinheiro. E um dia tomei iniciativa de simplesmente ir embora e ninguém mais saberia da minha existência. Troquei o luxo e a certeza pela simplicidade e a certeza pela incerteza. Hoje vivo uma vida que desejo, sofro como qualquer outro, mas vivo uma vida autêntica.”

Conversaram o resto da tarde. Anabell nem percebeu o tempo passar.

“Bom, eu preciso ir agora, está ficando tarde”, disse ela.

“Fique mais um pouco, Sansão e eu nunca temos visitas. Venha! Vou te mostrar onde moro”.

Atravessaram a cidadezinha e chegaram uma casinha pequena, bem humilde, mas conservada. Entrou e de cara viu logo uma estante de livros, seus olhos brilharam e Pedro reparou. “Gosta de livros?”, Anabell acenou que sim com a cabeça, indo em direção aos livros. Havia mais livros do que móveis na casa.

“Sua casa é adorável. Que lugar agradável”, disse ela ainda olhando os livros. Seu coração se enchia de alegria, via em Pedro um amigo que compartilhava uma história parecida. Pensou em como seria levar uma vida sozinha como ele, longe daquela velha. Sorriu...

“Anabell, você mora com alguém, sempre te vi sozinha?”, perguntou Pedro. “Sim! Moro com uma senhora que... calou-se de repente. Sabe, a verdade é que estou sozinha no mundo, meu pai e irmão são uns bêbados, ligam apenas para o próprio vício; minha mãe faleceu e minha irmã virou prostituta. Então passei a viver com essa senhora por falta de uma lugar pra ficar. Mas a vida lá é muito humilhante e cansativa”. Anabell torcia para que Pedro a entendesse e a chamasse para morar com ele. Não o conhecia. Poderia ser uma pessoa de má índole, mesmo sendo carismático e muito tranquilo. Mas Anabell não se sentia tão bem há anos ao lado de alguém. Queria arriscar, queria sair da certeza. Melhor do que ficar vivendo com aquela velha murcha igual um maracujá.

“Olha, aqui não tem muito espaço, mas se quiser pode ficar comigo e com o Sansão. O que acha? “ O coração de Anabell se encheu de medo e incerteza. Ficou um tempo em silêncio, com vergonha e receio de aceitar, com medo do vir-a-ser das coisas.

“O que você tem a perder, Anabell, não era isso que você queria há alguns segundos? O que tem a perder? Aqui está uma chance de mudar” disse num monólogo silencioso enquanto encarava Pedro nos olhos.

“Sei que nem me conhece direito, mas não lhe farei mal algum. Quero apenas ajudar porque me comovi com a sua história e me identifiquei muito com você”. Era a primeira vez que ouvira dele algo mais íntimo, no seu peito seu coração acelerou, suas mãos tremiam levemente por dentro. Anabell ficou sem jeito e disfarçou pegando um livro, que ao tirá-lo da estante outros três caíram. Abaixaram-se juntos para pegar os livros e suas mãos se tocaram. No toque a alma dos dois se comunicaram numa linguagem sem sons e o corpo dela arrepiou-se. Pedro olhou Anabell no fundo dos olhos, respirando ofegante, e a beijou.

Na cabeça de Anabell restava apenas um pensamento, a pergunta diante de tudo e de cada coisa:

"Quero isto ainda uma vez e ainda inúmeras vezes?"

“Sim!”