Vamos Enterrar a Vovó

Eu estava no trabalho quando o telefone tocou. A voz na linha me disse: você está sentado? Bem, esta não é o tipo de pergunta que precede boas notícias, como, por exemplo, você ser o único herdeiro de uma fortuna ou todos os seus parentes terem sucumbido em um naufrágio. Não, geralmente ouvimos algo desagradável após esta pergunta. Bem, era meu irmão ao telefone, então pensei que talvez minha mãe tivesse morrido. Já que não era para pedir dinheiro emprestado (ele não teria neste caso o escrúpulo de se preocupar com o meu eventual desmaio), provavelmente a morte da nossa mãe o justificaria ter se interessado em me telefonar. E, de fato, ele me anunciou uma morte, mas não da minha mãe: a mãe dela é que tinha ido verificar a veracidade da sagrada escritura.

Minha avó matou seu marido (mas não pelos métodos que a justiça costumeiramente se interessa em punir, mas através de chantagem, lamentações, sermões irascíveis e intermináveis, ou seja, o método feminino habitual). Minha avó também deserdou minha mãe e minha tia, portanto, não é lógico supor que ela fosse tomada de amor ardente pelos netos. Nem nós, tampouco, lhe tínhamos devotado afeto. Ou seja, meu irmão falara solenemente na hora de me anunciar a morte da vovó, porque assim como a maioria das pessoas, agiu fundamentado pelas idéias feitas e as frases prontas.O que quer dizer que meu irmão sempre será bem visto pela sociedade.

Tínhamos que enterrar vovó, então. Marcamos uma reunião de família no fim da tarde para decidir os detalhes do velório e enterro. Devo dizer que estas coisas geralmente me impressionam, porque me recordam do dia em que eu mesmo terei semelhante destino. Eu morto, parece uma piada. Infelizmente sempre tem alguém por perto que comete a deselegância de morrer para me lembrar da minha mortalidade. Não, sou do tipo que prefere presenciar o juízo final para não ter que conhecer a morte: se é para ser condenado, não é melhor pecar o máximo possível antes?

O grande debate acerca do enterro da vovó é que nem minha mãe, nem minha tia e nem o meu tio queriam arcar com as despesas decorrentes do funeral. O agente da funerária disse que o serviço social fornecia caixões de madeirite. Acharam deselegante, porque não era pintado. Sugeri que dividissem as despesas. Perguntaram se eu participaria do rateio. Disse que eu não era um parente tão próximo assim. Perguntamos à funerária se era possível alugar um caixão. Responderam que se pudéssemos devolver o caixão intacto, alugariam com prazer. Concluímos que para isso logo após o enterro teríamos que desenterrar a vovó. Por fim, foi decidido que não usaríamos o serviço social (o que os demais parentes pensariam?) mas a enterraríamos em um caixão simples, porém digno, ou seja, o mais barato.

Quando vi vovó no funeral percebi como são mentirosas as pessoas que dizem dos seus defuntos: nossa, parece que está dormindo. Não, vovó tinha cara que parecia feita de uma cera de cor horrorosa, seu rosto guardava os traços precisos de sua velhice hedionda, ou seja, parecia viva.

Ninguém chorou. O padre sonolento fez a costumeira prece pedindo para Deus abrir os portões do céu para vovó, o que eu penso que provavelmente não aconteceu: o céu deve ter portões justamente para pessoas como a vovó ficarem de fora. Depois disso colocaram vovó em um

carrinho, e o empurraram até a sua cova, o cortejo acompanhado de sua família que estava pesarosa pelas contas a pagar, pelo arrependimento de terem filhos tão feios e inúteis, e pelo túmulo ser longe da capela. Eu só pensava no que iria jantar.

Por fim, enterramos vovó, e, segundo todas as probabilidades, ela está lá até hoje.

Daniel Barbosa
Enviado por Daniel Barbosa em 11/07/2016
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