O GRANDE MISTÉRIO DE NATAL
Jorge Antônio já era um cirurgião conhecido e respeitado. Fizera internato, residência de primeiro, segundo e terceiro ano, sempre dando plantões de pronto-socorro. Se tornara assistente, e continuava a dar os plantões de cirurgia. Não precisaria mais faze-lo, já tinha reputação e era respeitado na enfermaria. O Prof. Alípio já o conhecia pelo nome e o tiraria do pronto-socorro quando quisesse, mas não queria, era sua cachaça, gostava do corre-corre, daquela vertigem de casos inesperados e situações incríveis e desesperadoras.
Dezembro chegara e aquele clima de Natal estava em toda parte. Era cristão o que bastava para diferenciá-lo dos colegas judeus. Todo fim de ano era a mesma história. Os cristãos ficavam com o réveillon e os judeus com o Natal. Topava, mas achava um pouco estranho. O fim do ano era de estourar champanhe para qualquer credo, o Natal só tinha uma dimensão maior para os chamados cristãos.
Não era o caso este ano, como assistente mais antigo e de maior nome tinha seus privilégios e este ano estava fora do Natal e do Ano-Novo. Não obstante ficava pensando e pensando sobre o significado de tudo aquilo. Há pouco descobrira um livro cujo título falava da “Mulher que gerou o Homem mais Importante da História”. O que teria passado pela cabeça dessa mulher tão importante e da qual pouco se falava ou se conhecia. Não lera o livro, estava guardando para as férias, mas pensava na mulher.
Uma reprimenda aqui, um pedido acolá, um enorme sofrimento mais adiante, não era muito. O seu pensamento médico ia para a virgem que dava a luz em condições extremamente desfavoráveis, numa manjedoura, por falta de lugar na hospedaria. Pelo menos era assim que Lucas descrevia os acontecimentos. Não escondia que gostava de Lucas porque era médico, mas também porque escrevia poesia pura e em grego. Por um capricho de menino Jorge Antônio resolvera, ainda no ginásio, que ia aprender grego, e o conseguira de modo até brilhante.
E ele sabia que Lucas o médico, que falava grego, era o que mais mencionava a mulher que tinha gerado o homem mais importante da história. Alguns ate chamavam o Evangelho de Lucas de O Evangelho de Maria outros de Evangelho da Misericórdia. Ele tinha escrito que ‘uma espada transpassara a tua própria alma” e também, que “sua mãe conservava todas estas palavras no seu coração”, mas não falava muito daquela noite na manjedoura em que ela “deu a luz seu filho primogênito e o envolveu em panos”. Cruzes tudo isso sozinha, nunca vira nada igual.
Misericórdia era o que sentia muitas e muitas vezes. Achava até que misericórdia e compaixão eram o coração da medicina. Opunha-as violentamente a piedade e pena. Ambas, misericórdia e compaixão, tinham raízes semelhantes envolvendo compaixão e isso ele entendia, grudava na raiz grega. Pathos era enfermidade, doença e com era estar junto, para ele compaixão era sofrer junto estar junto.
Era duro no cuidado e tratamento devido aos doentes, não tolerava deslizes nem esquecimentos, vivia para dizer que você pode errar o diagnóstico, mas não a conduta. O diagnóstico é corrigível, o erro de conduta mata. Era temido pelas enfermeiras e pelos residentes, pouco tolerante com o pouco caso ou esquecimento junto aos pacientes. Alias fizera do junto (con, syn no grego) seu mote, se tivesse um escudo lá estaria escrito conpathos ou sympathos, se a sofrimento estou junto.
Tinha uma birra terrível da Madre Tereza de Calcutá desde que ficara sabendo que ela distribuía orações em vez de analgésicos para os doentes com dores, mesmo tendo recursos para os remédios. Para as pessoas as doenças eram sofrimento bastante, não necessitavam que as dores as acompanhassem. Se fosse provocado ia citar Hipócrates no grego, mesmo sabendo de certas duvidas a respeito da frase, sobretudo a parte de curar, mas de aliviar e consolar não tinha duvida.
A medicina às vezes cura, alivia, de vez em quando, mas deve consolar sempre – CONSOLAR SEMPRE.
Mas, voltemos ao gélido vacum, era dia de Natal e como sempre fazia viera ao pronto-socorro tomar sua dose de cachaça especial. Foi ali que viu entrar Joaquim, 3 anos, filho de Maria. Tinha caído da varanda do segundo andar e por sorte caíra num canteiro de flores e gerânios. Sorte? Tinha pequenas escoriações pelo corpo, mas a cabeça batera na quina cimentada do canteiro.
Porra! Quem é que inventara a quina nos canteiros? Que mal havia se um pouco de terra escorresse para fora de um canteiro? Joaquim já fora atendido e alguém já fizera a classificação do coma, grau III para grau IV, Coma Profundo para Coma Irreversível. Embora conhecessem e respeitassem a classificação de Glasgow, não a usavam na sua complexidade, a classificação em quatro etapas era mais simples e dava indicações mais rápidas.
Jorge Antônio conhecia bem a classificação de Glasgow, até conhecia a cidade industrial da Escócia, cinza, escura e sem nenhum charme, mas fora lá que Teasdale e Jennet, professores de neurologia da University of Glasgow, desenvolveram e publicaram a famosa escala, na revista Lancet em 1974.
Ninguém gostava ou se sentia com total convicção para, de cara, avaliar um grau IV. Este grau era de coma irreversível, morte cerebral e corpo de uma só utilidade: transplantes.
Jorge Antônio olhou Joaquim e seu espirito voou no tempo para traz. Ano 1960, o jovem quintanista ensaiava frequentar o Hospital das Clinicas e seu concorrido Pronto Socorro. Fora lá que vira adentrar, num dia de dezembro, mas não Natal, Flávio, dois anos de idade filho de Maria... Luíza. Problema queda de varanda, primeiro andar, se machucara também na quina do canteiro. O caso, porém, era leve. Naquele tempo não havia classificação de Glasgow, se houvesse ia ser de I para no máximo II.
Acontece que Jorge Antônio era jovem e muito enamorado da medicina, Flávio era lindo, digno exemplar da classe média e Maria Luiza era uma mãe bonita, jovem e sofrendo muito. Jorge Antônio acompanhou aquela criança com todo cuidado do mundo e mais um pouco, em dois dias estava bem consciente, brincava com ele no terceiro e no quarto teve alta. Não conseguia esquecer o olhar agradecido da mãe, mãe é mãe, vai do sofrimento ao paraíso em questão de minutos. Nunca mais a vira, mas aquele olhar ficara grudado na sua retina.
Agora naquele quarto escuro, quase sem luz, como recomendado para os comatosos, começou o inevitável, a comparação:
Flávio, dois anos, pele clara, queda de primeiro andar. Joaquim, pele escura, três anos, queda do segundo andar. Mãe de Flávio, Maria Luiza, bonita, elegante, classe média alta. Maria, mãe de Joaquim, Maria só, beleza judiada pela lida diária, mulher pobre. Ambas mães muito sofridas e sofredoras. Flávio um coma leve, Joaquim um coma quase irreversível.
Naquela escuridão de hospital, Jorge Antônio lembrou-se do filme Zorba, o grego e de Anthony Quinn o majestoso ator e da cena em que surpreendido, ajoelhando-se para rezar, ela alega que estava procurando um botão da camisa. Pensou sorrindo naquela cena e fazendo uma genuflexão pediu àquela mulher que gerara o homem mais importante da história que intercedesse pelo Joaquim e que o tirasse da morte cerebral.
Feito isto, checou a medicação, os cuidados médicos e puxando o celular avisou a desolada família que iria permanecer no hospital e que, portanto não era certo que chegaria para a ceia de Natal. Ouviu ranger de dentes do outro lado e foi tratando de desligar o telefone.
Acabou se envolvendo no plantão e foi seguindo os habituais casos, acrescidos de bebedeiras e atropelamentos causados pelos habituais motoristas natalinos embriagados. Facadas, tiros, agressões etc. Um ou outro caso clínico. Uma apendicite numa bonita e morena jovem. O residente iria operá-la e certamente capricharia numa incisão quase invisível. A cachaça certamente não estava aguada. De vez em quando uma espiada no comatoso Joaquim, mas não havia novidade. A enfermagem estava atenta, mas o coma parecia mesmo irreversível.
A noite avançava e a hora santa do Natal se aproximava. As 23h30min deu uma espiada e achou que Joaquim havia se virado, mas fora só impressão. Quando começaram a estourar garrafas contrabandeadas de champanhe nos postos de enfermagem, onde a generosidade da ingestão não passava de goles, entrou na obscura enfermaria. Esfregou os olhos e não quis acreditar no que via, meia noite em ponto Joaquim estava em pé no leito e esticava as mãos para sua mãe que se aproximava chorando do berço.
Porque aqui e agora? Já era Natal em mais da metade do mundo, na Europa inteira, porque ele não acordara antes! Baixou a cabeça e entendeu, havia pedido, o que sabia um milagre, aquela que gerara o homem mais importante do universo e então fora atendido quando se celebrava aqui e agora, na terra de Joaquim, o Mistério do Natal.
Começou a chorar silenciosamente diante de um mistério muito maior do que ele e sua medicina, ajoelhou-se diante da manjedoura-berço de Joaquim e, sem pensar em Zorba, sua família e em nada mais começou a rezar:
-Senhor eu não sou digno...