RÁDIO ANTIGO*

Por causa de já estar no final da gestação era o terceiro dia que trabalhava em casa. Não havia problema nenhum, como analista sênior seu serviço dependia do acesso a internet e as senhas das financeiras. Mas o senso de responsabilidade fazia com que se esforçasse mais do que no banco. E não era só isso, sentia falta do ambiente. Estava lá há quatorze anos. Começou como uma daquelas meninas que ajudam os velhinhos a usar o caixa eletrônico, fez faculdade e pós-graduação patrocinada pela instituição. Isso sem contar os cursos. Hoje era responsável por apenas 12 grandes contas. Todas azeitadas, com rendimentos acima da média. Não havia o que mexer. E essa era a grande porcaria! Vinte anos entre uma gravidez e outra e eu continuo não sabendo esperar. Este pensamento a deprimiu. Saiu da frente do computador no escritório e foi até a sala. Lá, em lugar de destaque, lhe olhou com carinho Lupicínio. Era o apelido que seu falecido amigo Bruno dava ao rádio antigo que lhe dera. O bicho parecia ter saído de uma novela de época ou de um desenho do pica-pau. Arqueado, todo em madeira envernizada. Ele tinha herdado da sua avó. Ligou-o e não se surpreendeu dele continuar sintonizado na rádio de música nacional que ele tanto gostava:

"Hoje joguei tanta coisa fora,

Vi o meu passado passar por mim.

Cartas e fotografias, gente que foi embora

A casa fica bem melhor assim"

Arrumar a casa, boa ideia. Olhou em volta e desanimou. A diarista deixava tudo um brinco. Parecia um modelo decorado de construtora. Isso a irritou. Com a vida aprendera a gostar de serviço doméstico. Mas tinha que reconhecer que o trabalho, os cursos, o grupo, o serviço voluntário da Irmandade, as afilhadas e as atividades culturais que tanto gostava não lhe deixavam tempo para mais nada. A música para e começa outra interpretada pela Maria Bethânia:

"Começaria tudo outra vez, se preciso fosse, meu amor"

A chama no meu peito ainda queima, saiba, nada foi em vão"

Deu risada sozinha. Sua mente deu um salto de 18 anos, quando um dos inquilinos da pensão do Bruno a mandou dizer que ele parecia o Caúby Peixoto uma vez que cantou esta música. A biba ficou uma fera! Falou um monte. Até perceber o quanto ela e seu afilhado estavam rindo e passar a achar graça também. Ele amava a Maria Bethânia.

-Ah meu amigo... Que falta você me faz. Foi até a cozinha e encheu um copo de Coca-cola e pegou um pedaço de paçoca. Saboreou-os em homenagem a ele. Sempre lanchavam alguma besteira parecida antes da hora de ir ao grupo de Narcóticos Anônimos. Na mesma sala que a traficante do Centro a levou arrastada e entregou para ele: Cuida dessa bostinha senão as outras vão matá-la. Fazia três meses que sua mãe a expulsara de casa por estar fumando crack. Lhe tirou até a guarda de seu filho de dois anos. Dezesseis anos, cabecinha de ostra, já havia apanhado feio das outras viciadas mais de uma vez, se sentia completamente perdida:

-Aqui não é para isso não. Mas eu tô precisando mesmo de alguém para limpar minha pensão. Só que é assim, gracinha. Usou droga, rua. Deu para inquilino, rua. Levou alguém para dar lá dentro, rua. Sem choro. Entendeu? Então tá bom. Vamos ver se a gente consegue reeditar esse seu folhetim com um pouco mais de classe. Agora senta a bunda na cadeira e escuta. Depois te levo para casa.

Voltando de suas lembranças percebe a música do Chico Buarque interpretada pela Gal Costa que está tocando no rádio:

"...Mas na manhã seguinte,

Não conta até vinte, se afasta de mim.

Pois já não vales nada, és pagina virada,

Descartada do meu folhetim"

Ela novamente ri gostoso e fala olhando para cima:

-Foi por isso que você deixou o rádio como herança para mim, sua bicha velha? Me chamou de puta sem classe na época e agora vai ficar me assombrando? Eu vou levar essa velharia para o terreiro, hein!

Foram anos difíceis, mas gostosos. Ele era rigoroso. Ofereceu um quartinho que mal cabia a cama de solteiro. Tinha que se vestir sempre de calça e camiseta larga. E exigia mágica, porque queria limpo e arrumado aquele lugar, que era uma velharia caindo aos pedaços. Ao mesmo tempo era amoroso, compreensivo, divertido. Fez ela se envolver no serviço voluntário de NA tanto quanto ele. Era engraçado que para evitar problemas com os inquilinos a apresentava como filha:

-Do tempo que eu ainda cabia dentro do armário.

Foi mesmo seu pai. Mais que um pai na verdade. A ajudou a procurar seu primeiro emprego, a voltar a estudar, a conseguir de volta a guarda de seu filho, a criá-lo, a erguer a cabeça a cada rasteira que tomou da vida. Principalmente em se tratando de relacionamentos. No começo era: Deixa eu ficar uma noite aí com você. As coisas foram melhorando até chegar ao ponto dela ligar, chorando, de Montreal: Vêm aqui ficar comigo. Eu quero colo.

-Mas você tá louca, menina? Como é que eu vou para Montreal?

-Eu pago sua passagem, você fica aqui no meu hotel. Vêm, Bruno, por favor.

E ele foi.

Hoje as coisas eram mais tranquilas, ela era mais resolvida. Estava bem casada. Seu marido sabia do seu passado. Não o compreendia, era verdade. Mas estava cansada dos homens que podiam compreendê-la. Já tinha maturidade para aceitar que a ignorância podia ser a maior benção do mundo.

Foi despertada de sua viagem ao passado ao reconhecer nos primeiros acordes a próxima música. Sua pele se arrepiou toda. Levantou-se e abriu a porta do quarto do filho que pôs para fora de casa quando descobriu que estava cheirando cocaína. Achou que ele voltaria pedindo ajuda depois de uma semana ou duas. Já fazia mais de dois meses que não tinha notícia. Ainda na parede o gancho para a guitarra que ele vendeu:

"...Que a saudade é o revés de um parto.

A saudade é arrumar o quarto

Do filho que já morreu."

Sentou no chão e se pôs a chorar. Sentiu a primeira contração e as pernas molhadas. A bolsa rompeu.

Aristoteles da Silva
Enviado por Aristoteles da Silva em 07/07/2016
Reeditado em 04/11/2024
Código do texto: T5690958
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