CORAGEM IMACULADA

É de madrugada, e as vozes no porão não deixam Daniel dormir. Pedidos por comida, medicamentos, e por liberdade estão entre os mais ouvidos. Os pais do garoto de 11 anos ganham a vida sequestrando pessoas endinheiradas nas ruas do Rio de Janeiro. Nas horas vagas, também ajudam os traficantes do morro com outros trabalhos sujos. Apesar de não concordar com a vida que os pais levam, tem medo de demonstrar isso de maneira clara.

Após perceber que o simples fato de colocar o travesseiro sobre a orelha não o faria dormir, resolveu se levantar da cama e descer até o porão. Em meio a sujeira, aproximadamente dez pessoas estavam presas num espaço minúsculo. Apesar do cheiro de fezes e urina pairar no ar, isso não incomodava Daniel, já estava adaptado. Na verdade, nos últimos dias gostava mais de ficar lá em baixo do que em seu quarto, afinal uma das sequestradas era Julia, uma menina de 11 anos de pele e olhos claros, bem diferente dos moradores do morro.

Quase todas as noites eles conversavam na beira da cela, e o papo sempre terminava com Daniel prometendo que convenceria os seus pais a tirarem todos de lá. Os outros integrantes do cubículo, estavam mais preocupados com o frio e fome, então não se importavam com a conversa das crianças. Nessas horas ninguém costuma ser tão solidário quanto pensa que será neste tipo de situação.

Certo dia, após os seus genitores discutirem rispidamente, o pai do menino, que estava sob efeito de drogas, atendeu o telefone e começou a gritar feito um louco. Ele disse que mataria a todos caso não pagassem. Com fúria bateu o telefone no gancho, e foi em direção ao porão. Daniel o seguiu com medo do que poderia acontecer, mas antes de descer as escadas por completo, escutou vários disparos de arma.

Ele correu em direção ao barulho, e chocou-se com o que viu. O homem, após atirar em todos os sequestrados, se sentou rente a grade. Havia sangue por todo o seu corpo, respingado dos disparos proferidos. Julia estava deitada, morta e irreconhecível, com uma cratera horrenda no meio do rosto. Não era possível mais ver os seus olhos claros, pois estavam encobertos por pequenas poças de tom rubro.

- Não! Pai! O que você fez?

- Sobe moleque, vai dormir, isso aqui não é coisa de criança. – Respondeu com voz mole, desorientado.

Mas o menino estava em choque. Suas lágrimas, sempre presas, dessa vez caíam de forma torrencial. Daniel fechou o cenho, e caminhou lentamente até o pai, que estava zonzo devidos aos tóxicos. Sentou ao seu lado chorando e o abraçou. Permaneceu alguns minutos assim. Depois desse tempo, sutilmente pegou a arma ao seu lado e disparou abaixo do queixo do pai, explodindo a tampa da cabeça.

Alguns segundos após o disparo, a mãe do menino desceu até o porão.

- Espero que não tenha matado tod... Daniel? O que seu pai... MEU DEUS!

A mãe partiu correndo na direção dos dois, mas antes que chegasse muito perto, o menino disparou dois tiros no peito da mulher.

***

Dois meses depois

Mosteiro de São Bento, Rio de Janeiro

O seminarista Dimas varria atrás do púlpito da igreja matriz, que àquela hora estava completamente vazia. Colocou cuidadosamente a vassoura no chão e agarrou o microfone. Bateu duas vezes no instrumento para verificar se estava mesmo desligado, e após ter certeza, começou a encenar a sua homilia preferida do Monsenhor Adamastor. Mas o rapaz de 26 anos, apesar da empolgação, não levava jeito com as palavras, e num desses atos de euforia, esbarrou na plataforma a sua frente, e despenca junto com ela, fazendo um grande estrondo.

- Ai... minha perna... – murmurou - preciso arrumar isso antes que alguém chegue – pensou em seguida.

- haha...

- Tem alguém aí? – perguntou indo em direção ao som de risada contida.

O som estava vindo do confessionário, e Dimas tacitamente caminhou até ele para descobrir quem estava rindo do seu tombo. Assim que puxou a pequena cortina, se assustou ao ver um menino negro, franzino, segurando um pão enorme.

- O que faz aí, moleque? Trate de ir para a sua casa! Onde já se viu, furtando a moradia do senhor! – falou com voz firme, e dedo em riste.

- Eu não tenho onde ir, sinhô. Por favor...

- Qual o seu nome e a quanto tempo está aí? – Perguntou ainda bravo.

- ...

- Responde infeliz!

- Daniel. Ah, Acho que uma semana, não sei. – respondeu de cabeça baixa.

- Uma semana!?

- ...

- O que aconteceu com os seus pais?

- não tenho.

- Vou me arrepender disso – pensou – Tudo bem, tem uma sacristia vazia, vou te levar até lá. Mas não é para você sair que te levarei comida! Vou arrumar um abrigo para você morar, então antecipo que sua estadia aqui é temporária. Uma semana no máximo! E isso se meus superiores concordarem.

Dimas levou o menino, que não desgrudava do enorme pedaço de pão, até o quarto vazio, e trancou-o lá. O seminarista deveria esperar até o anoitecer, quando o monsenhor Adamastor, um homem alto, magro e idoso, chegaria para decidir sobre o assunto. Adamastor era o líder dos padres, e a sua palavra seria a que definiria o futuro do garoto. Os demais padres, tão velhos quanto, somente o ajudariam com argumentos para a sua sentença.

A noite não tardou a chegar, e todos os líderes se reuniram para conversar. Os anciões debateram por muitas horas, e no fim, aceitaram com ressalvas. Daniel deveria trabalhar no mosteiro por todo o tempo que permanecesse, e o seminarista Dimas ficaria responsável por ir até a cidade descobrir de onde era, e encontrar uma nova moradia para o menino o mais rápido possível.

Na medida em que os dias iam se passando, e não conseguiam um lugar para Daniel, cada vez mais os padres e seminaristas tratavam pior o jovem hóspede. Boatos maldosos eram ouvidos pelos corredores, uns diziam que deveriam expulsá-lo, pois se a moda pegasse, aquilo viraria uma FEBEM; e outros, que tinham que trata-lo muito mal, pois assim sairia por conta própria. Mas quanto mais menosprezavam o menino, mais parecia que ele não se importava. Não sabiam que aquelas ofensas eram nada perto da vida que levara no morro.

Demorou várias semanas, muito mais que o esperado, até que o aspirante a padre descobrisse a verdade por trás do menino. Essa demora foi em razão de procurar informações primeiro em orfanatos, hospitais e nos órgãos assistenciais das redondezas. Todavia a verdade só apareceu quando passou a buscar informações nas delegacias. Só assim soube que abrigava um assassino fugitivo, que deveria estar em uma casa de custódia, e não num mosteiro. Nunca soube porque, mas decidiu que antes de revelar aos policiais o seu paradeiro, queria ter uma conversa com o rapaz. O que jamais aconteceu.

Quando Dimas retornou, já era noite. E a mansidão, comum de um mosteiro, estava mais silenciosa. Assim que cruzou a porta principal da igreja matriz, viu um padre com a veste branca coberta de um suco vermelho. Ele lhe olhava com pavor. No fundo, os demais padres rodeavam algo, ou alguém. Assim que se aproximou, não acreditou no que estava vendo, o menino estava morto. Mais tarde soube que tivera um assalto. Os bandidos buscavam objetos em ouro e prata, mas Daniel conseguiu pegar a arma de um deles, e os colocou para correr, só que não sem antes ser baleado no peito.

Resolveram enterrar o garoto no cemitério dentro do mosteiro, e somente na missa de 7º dia da sua morte, foi que os policiais souberam, por boatos, que se tratava do menino que matara os pais num crime bárbaro. Dessa forma, o comandante da PM enviou a cavalaria para apurar a situação. Só que para a surpresa dos militares, eles foram barrados logo na entrada. Dimas, e os demais seminaristas e padres, faziam uma corrente. Por maior que fosse a autoridade daqueles homens da lei, não iriam desrespeitar a imagem de Daniel.

Nunca houve tantas pessoas naquela igreja. Daniel não tinha família, mas foi adotado pelos familiares das vítimas de seus pais, e muitos da sociedade. O ato do menino negro e pobre com os pais, indiretamente cessou a onda de sequestros na região. Daniel foi um herói sem capa, e mostrou que a coragem e a lealdade também podem ser superpoderes.