A arte Bucólica
Nasci em uma fazenda. Não são poucas as recordações daqueles meus primeiros anos de vida até o final da minha adolescência. Quando me vou para cama ainda deixo vir preencher os últimos minutos antes de chegar o sono os sons próprios das regiões campestres. Meu quarto ficava quase colado ao criadouro que papai mantinha ao lado da casa; as rãs eram uma de suas paixões e eu adormecia ao som de um coaxar calmante e ritmado. Agora que minha vida se tornou uma rotina feérica, da qual dificilmente consigo me desvencilhar vou muito raramente à fazenda, mas não deixo nunca de me banhar nas lembranças que trago para a cidade grande.
Os passeios a cavalo, a pesca no rio, os jogos de bola na área gramada e com balizas ainda se encontram a minha disposição, mas quem sou eu para desfrutar desses prazeres de rei? Deixo aos meus filhos que ainda não entraram na vida adulta a qual sugará deles toda chance de desfrutar das coisas que valem mesmo a pena. A não ser que optem por uma atividade diferente da minha ou permaneçam por lá, no campo, onde se encontram agora terão o mesmo destino do pai, empresarial e estressante.
O café que mamãe preparava lá no fundo da casa adocicava a nossas manhãs. A fumaça se esvaía pelo basculante entreaberto e eu despertava inebriado com esse aroma inigualável. O leite fresco e encorpado da ordenha matutina, o bolo de aipim, o cuscuz, as travessas plenas de amoras, tangerinas, uvas, as rodelas de abacaxis e os gomos das nossas laranjas, tudo produzido ali mesmo eram mais do que precisávamos para um dia saudável e feliz. Não faltavam opções para nos distrair; nada era imposto ou obrigatório, por isto sentíamos a mesma felicidade tanto ao nos banharmos nas águas do rio, passear de barco ao longo da costa ou ajudar papai na colheita ou na plantação. Fazíamos o que nos desse vontade porque essa era a forma que escolheu para nos educar. Somente em relação aos estudos ele não abria mão de um horário fixo e permanente.
Lembro-me de uma manhã enfarruscada anunciando chuva em que, descumprindo uma recomendação de mamãe, entramos no barco e nos afastamos da costa. O rio não é violento, mas possui certa profundidade. Cássio e Aninha, meus irmão mais novos não quiseram me acompanhar e, desistindo logo nas primeiras remadas, pularam na água e retornaram imersos até o pescoço, para a terra firme. Eu segui tranquilo, remando suavemente e sai dos domínios da nossa propriedade.
O vento insistente, anunciador de chuva, fazia balançar as folhas dos coqueirais que o margeavam; iguanas enormes e esverdeados surgiam ao longe e desapareciam para dentro da mata. Fui apanhado pelo temporal, enlaçado pelo vento e pela chuva. Aquilo me enchia de vida, de espírito aventureiro, o que me fazia seguir com mais vigor e alegria. Já avistava de longe o cais, as balsas ancoradas sendo jogadas, pela força das águas, de encontro à parede de pneus que os amortecia; automóveis, motocicletas e contêineres lacrados lotavam o convés e homens iam e vinham sobre o ancoradouro balouçante portando mercadorias às costas.
No caminho de volta, completamente encharcado, parei um pouco distante de casa a fim de secar minha roupa antes de me apresentar à mamãe. Puxei o barco para a terra firme, despi-me e, de cuecas, segui para dentro da plantação. As terras agricultáveis de papai eram o seu orgulho. Os laranjais dominavam boa parte da plantação. As fileiras muito ordenadas subiam encosta acima até se perderem nos montes. Saí pisando entre os canteiros já lodacentos pelo temporal, mergulhando até as canelas meus pés descalços.
Cheguei a um ponto onde laranjas maduras dos pés mais acima haviam se desprendido e rolado, acumulando-se aqui, na terra esfolada pelas rodas das charruas e pelas patas dos animais da lavoura. Encostei-me a uma das árvores e fiz dela o meu descanso. Ao meu lado laranjas maduras, prontas a serem deliciadas. Não fiz outra coisa durante a próxima hora além de fartar-me das frutas que eu ia lavando na poça d’água e descascando até ter os gomos doces e saborosos feitos em bagaços com a minha contente mastigação.
Era tão agradável esse meu estado que em nada mais pensava. Se todos os prazeres, toda uma vida fosse resumida à sensação de bem estar e felicidade que me invadia eu já acharia o suficiente. Nada mais queria então. O sol voltara a iluminar a terra, as águas do rio e a plantação. Eu descascava as frutas e lançava para frente as cascas; elas rodopiavam e iam cair na correnteza entre galhos e folhas mortas.
Para além da outra margem ficava o milharal. Lembrei-me do trabalho que nos esperava no dia seguinte e nos outros. A colheita estava próxima e certamente seríamos requisitados para auxiliar em todos os detalhes desta preparação. As espigas já se faziam fartas, os galhos se inclinavam de tão carregados dando o exemplo da humildade presente na natureza. Eu apreciava bem de perto esse belo espetáculo e me enchia de orgulho e de admiração por meus pais, tão dedicados às coisas da terra.
Olhei para o horizonte e me dei conta do dia prestes a se findar. O círculo amarelado do astro rei proporcionava do firmamento uma visão deslumbrante. Levantei-me apressado e corri para o barco, mas não tive coragem de aproximar-me. Além do meu traje sumário que agora me envergonhava havia o medo da reprimenda e da possível sova que levaria de papai em resposta ao meu ato tolo e tresloucado. Em volta do barco, ao lado de papai, meus irmãos e de um homem que eu não conhecia estava mamãe aos prantos e desolada. Tinha em mãos minhas peças de roupa e gesticulava com agonia.
A consternação era total e comovente; por certo me davam como morto ou desaparecido. Não podia deixar que aquela cena continuasse; sendo assim apresentei-me. Tirando os carões, os xingamentos e as tapas que levei quando entramos em casa, os dias seguintes foram normais, mas de muito trabalho no milharal. Contudo e apesar do susto não posso negar que tivera um dia feliz; como quase todos que fizeram parte da minha rica e inesquecível adolescência.