Cumplicidade no café da manhã
Era uma manhã fria, mas gostosa de exercê-la.
Ela pegou o óculos de grau na cabeceira e retirou o cobertor calmamente. Deu seus passos lentos em direção à suíte. Olhou para o marido. Era inegável sua paz todas as manhãs ao vê-lo ali deitado, respirando. Ela que não gostava de romantizar, havia se dado conta de que o amor entre eles muitas vezes a manteve estável e segura. Ela sabia que o amor romântico por si só não bastava a ninguém, mas este complementava a sua fragilizada saúde existencial.
Vai até o rosto dele e o beija com o mesmo amor de quarenta anos atrás.
Sorri, de felicidade genuína.
Sentiria muita falta dele se o perdesse. Seria como perder uma parte de si que se fundia em prazer e dor. Porque amar dói também. E nesses 40 anos de parceria, ele se tornara o seu companheiro leal e cúmplice de suas dores e inquietações.
Estava segura. Estava em paz.
Ajeitou a camisola de renda enquanto endireitava o óculos em seu rosto bem vivido. Abriu a porta do banheiro com a calmaria que nunca imaginou que teria. Ficar mais velha deixava-a cada vez mais tolerante consigo mesma. Se ela tivesse a auto-tolerância que ela tem hoje aos 20 anos, com certeza não teria desenvolvido uma gastrite nervosa. Era perfeccionista e metódica. Isso a sufocava e sufocava quem convivia com ela.
Marcelo era o oposto dela. Mas não a julgava. Em vez de irritá-la como a maioria fazia, ele fazia uma piada e quebrava toda a tensão dela. Ela sempre ouviu que os opostos se atraem. Até um certo momento sim, mas se não houver compreensão, delicadeza e ética, não há atração ou afinidade que mantenha uma relação. Em qualquer relação humana a solidariedade é uma chave que abre milhares de portas em zonas escuras e conflituosas.
A insegurança não a habitava mais. A não ser a insegurança diante da morte. Esta é a única que a assombra durante um sono ou outro. Às vezes acorda assustada achando que está perdida em uma floresta escura e fria e ao tocar o corpo de Marcelo, sente-se salva de seus próprios medos. Toda a vida os seus medos a guiaram, mas agora, aos 70 anos isso não deveria ter o mesmo peso de antes. Estava casada há quarenta anos, aposentada, com filhos bem criados e netos saudáveis. Viaja sempre que pode e goza de uma saúde como puçás senhoras nesta idade gozam. Bom, ela que sempre temeu a vida, sente que agora pode relaxar e viver sem calcular os passos que vai dar, com medo de cair.
Olha o seu reflexo no espelho e se gosta. Suas rugas não incomodam e nem a entristece como antes. A vaidade agora era poder tomar banho sem auxílio, caminhar sozinha e ir ao supermercado sabendo voltar. Penteou os cabelos grisalhos enquanto se sentia bonita e atraente para o seu marido. Gostava mais de si mesma agora do que nunca antes. Se quando jovem, tivesse essa paz dentro de si, saberia o que fazer quando achava que estava tudo perdido, quando na verdade era ela que estava fechando os próprios olhos. Ela que sempre foi fechada demais em si mesma.
Vai até a cozinha preparar o café. Gosta deste ritual de manhã. E faz o café no coador, como sempre preferiu sua mãe. Marcelo sempre acorda com o cheiro do café dela. É o despertador natural dele, ela sempre diz. Ela coloca os pães de queijo para assar. A água ferve enquanto os seus pensamentos flutuam em uma atmosfera leve e clara. A solidão que sentia todos os dias quando era mais jovem desapareceu. O mundo é pesado demais para se levantar com ele. Após 15 minutos, retira os pãezinhos quentinhos do forno do fogão.
Os pássaros cantam do lado de fora por cima do galho da árvore no quintal. Ela passa o café se sentindo plena ao ouvir o gorjeio do pássaro. Termina e coloca um pouco na xícara. Dá uns passos e vai sentar-se à varanda, de onde se aprecia a paisagem do jardim em contato com as borboletas durante o sol da manhã. O beija-flor se alimenta do néctar encontrado nas flores. Marcelo se levanta silenciosamente. Sabe que sua amada se encontra lendo ou apreciando o jardim. Marília adora ler pela manhã, principalmente no frio.
Ele vai até o banheiro escovar os dentes. Nunca a beijou pela manhã sem que estivesse devidamente preparado para isso. Ela ria desta obsessão dele.
Marília apanha o livro que está ao seu lado no sofá da varanda. Entre pãezinhos de queijo e um gole de café quente e forte, ela se atenta as linhas existenciais do romance familiar ‘Era meu esse rosto’ da escritora brasileira Marcia Tiburi. Marcelo chega com a sua xícara de café e a beija no rosto, dizendo-lhe ‘bom dia’. Senta-se ao lado dela e apanha um pão de queijo da bandeja. Abre o jornal do dia na seção de política e já diz:
Esse país não tem jeito mesmo.
Marília ri e toma mais um gole de café.
E nessa cumplicidade afastam de si todos aqueles dias tristes da juventude solitária da cidade.