Acrônico
Das manhãs frias às noites vertiginosas, são das tardes de outono que mais tenho lembranças. Os gorros de lã se encaixavam na cabeça como capacetes de gladiadores. Tínhamos toda virilidade e disposição dos homens de armas, com aquela sede por aventura que era insaciável. Era estranho e ao mesmo tempo reconfortante; deitar sobre a neve macia e mimetizar anjos de brancura duvidável. Ainda é vívido o cheiro de terra embrenhado no gelo. Não era neve de boa qualidade, como a mãe costumava dizer.
O que tornava tudo mais esquisito era o fato de nevar no outono e o mesmo não acontecer no inverno. Depois que cresci, aprendi o que significava a palavra atemporal, e era assim que costumava me referir ao lugar: um lugar onde a primavera trazia chuvas torrenciais e o outono nevascas ocasionais. Atemporal, diferente de tudo que viria a acontecer na minha vida; tão temporária – frágil e inexorável – quanto a areia que escorre pela ampulheta.
Na época eu não sabia, pois nunca imaginaria.
Naquele tempo, tudo que eu queria era observar as folhas caindo enquanto o orvalho congelava, enchendo de pingentes as árvores de sonhos. E Mariana se encaixava nesse panorama como uma pincelada de aquarela numa tela em branco. Eu era um garoto perdendo a inocência e ela era uma amiga sempre solícita. Não pude evitar me apaixonar por aquele sorriso. Vê-la correndo pela rua, em nossas costumeiras brincadeiras infantis, era a melhor sensação do mundo. A respiração gelada já não doía tanto, o nariz vermelho deixava de ser um incômodo e o calor daquele sorriso... o conjunto que a formava era uma orquestra ritmada, tocando a mais bela melodia já criada. Um final tão trágico para uma criatura tão divina.
Eu tinha 12, quando sua vida foi ceifada. Um carro e um sinal vermelho, e nada além disso. Acho que foi aí, nessa crônica temporal de um lugar sem tempo, que tudo começou a mudar. Hoje sou velho e argumento como um adolescente na flor da idade – falta-me maturidade –, mas adquiri um discernimento que só chega com certo número de dezenas. Estava no topo, jogando bolas de neve e gritando para o mundo o quão eu era capaz de tocar o céu, feito um atlas inverso que segura o firmamento e nem mesmo boceja. Mas esse ponto, essa morte, essa falta de vida, me fez descer a montanha em uma escalada lenta e dolorosa.
Não vou dizer que a vida não me revelou raios de sol nas nuvens geladas, mas hoje, quando paro e penso, nada disso fez muita diferença.
Conheci Alana ainda com 18 anos. Um sorriso encantador num rosto oval e de olhos verde mar. Nenhum marinheiro hesitaria em se lançar à deriva naquelas águas plácidas. E eu, como bom homem dos mares que era, sucumbi às suas ondas.
Casamos, vivemos duas longas e felizes décadas, e no vigésimo primeiro ano, tivemos um filho.
E esse filho morreu.
Alguém que teria muitas semanas pela frente, que se transformariam em meses e anos, mas foi levado na primeira. Doença Pulmonar das Membranas Hialinas. Esse foi o nome que o médico deu para a morte do meu filho. Como todo ser humano, eu não aceitei. Briguei, chutei, esperneei; causei alguns hematomas na face do doutor. “Eu compreendo”, ele me disse depois do ocorrido. Eu queria pedir desculpas com sinceridade, mas as palavras saíram apenas por um decoro facultativo. Não, ele não compreendia. Ninguém compreendia.
Após esse episódio, tudo passou a ser resquício. As vontades, os sonhos, o trabalho, o casamento, a vida... meros fantasmas de um corpo que já partira em uma longa viagem. E eu, nesse espectro difuso atrelado a uma vida artificial, me rendi ao inevitável.
Primeiro o álcool, depois os cigarros e então o divórcio. Alana não me suportou por muito tempo. Eu estava quebrado. Ela também, mas era uma mulher de fibra. Lutou até os últimos minutos, enquanto minha indiferente falta de vontade martelava cada caco do que restara dela. Desmoronando suas emoções como um castelo de cartas; todas velhas, castigadas pelas intempéries do tempo.
Não chorei quando ela partiu. Ao contrário, sorri. Sorri porque finalmente ela estava livre. Livre de mim. Livre das minhas tristezas e da minha queda catastrófica em direção aos rochedos.
Talvez uma tragédia vingativa pudesse se desenrolar das peripécias do destino, mas não comigo. Nem o mais nobre poeta seria capaz de me imbuir com a motivação necessária.
O vento do Norte sopra na sacada da varanda, frio e vazio, enquanto fecho os olhos e sinto a inexistente vastidão que traz consigo. Renova as energias e me transporta para um lugar há muito perdido. O chão convidativo me chama como uma dama embebida em luxúria, e os meus 44 anos já pensam em ceder.
Aquelas retrospectivas, que passam pela mente de todo suicida, cruzam através da minha, enquanto os dedos tocam o mármore gelado e me alçam de pé sobre a mureta. Olho para baixo, o semblante decidido de quem sabe o que faz. Como sei disso? Eu não sei, mas certamente imagino. Sinto uma gota escorrendo pela bochecha e salinando a boca e penso: talvez não seja tão destemido assim...
Eu quero abrir os braços e me lançar. Deixar o corpo pairar e descer como um salto de paraquedas para eternidade. Quero ver, pela última vez, o cobre de outono sendo varrido pelo bege da neve suja. Ouvir uma risada maravilhosa que orquestra meus sonhos para livrar-me de pesadelos. Deitar e deixar que o anjo alvo ganhe cor...
Mas, como sempre, sou fraco demais. Não percebo quando foi que desci, e nem mesmo quando me encolhi em um canto e comecei a chorar. Talvez o mundo real coloque tanto peso sobre mim a ponto de fazer-me o verdadeiro Atlas. Não segurando o topo do céu, mas a base do tudo. Há uma obrigação em manter-me aqui, de pé, mesmo quando todas as coisas me dizem que não. As placas de concreto me chamam, o vento assobiante me seduz, e as lembranças, ah, as lembranças... são como filmes rodando numa super8, no looping sem fim de imagens em sépia.
Se não posso morrer, então não quero fugir. Não quero. Tudo que quero é ficar aqui. Fazer desse lugar um ponto de fuga, uma válvula de escape, do mundo que tanto me cobra e nada me devolve. Viver por primaveras, verões, outonos e invernos. Apenas viver.
Como se o mundo, com seu tudo e seus todos, fosse um grande lugar atemporal.