A JÓIA DO LEILÃO

Era criança, tinha dez ou doze anos. Época do festejo da padroeira de minha cidade e uma das noites era dedicada aos estudantes, que, por sua vez, eram encarregados do leilão. Na verdade, eram incumbidos apenas de conseguir as jóias para serem leiloadas após a novena. Isso fazíamos pedindo de casa em casa.

Como se tratava de leilão pequeno, pois a criançada não conseguia quase nada de valor, era colocado logo no primeiro dia da novena, ou no primeiro dia da semana, cuja freqüência era pequena.

Naquele ano, eu fazia parte do grupo dos organizadores, responsáveis pela peregrinação nas casas. Quase sempre íamos a pé, pois poucos tinham uma bicicleta ou sabiam nela andar.

Dividimos os responsáveis pela noite em dois grupos e comigo ficaram os dois irmãos: João Honório e Expedito Caetano, mais conhecido por Pepé. Reunimo-nos para planejarmos a estratégia de trabalho. Sabíamos que o outro grupo iria sair cedo para visitar as casas da cidade e geralmente o que recebiam eram ovos, feijão, goma e, quando muito, um bolo de goma, quando alguém estava fazendo farinha. Na sala de estar dos dois irmãos o relógio marcava dez horas e vinte minutos. Lá fora o sol queimava e o calor estava insuportável.

- Vamos sair agora, nesse sol? – perguntou João Honório, enquanto olhava para a rua quase deserta.

Expedito olhou para mim como se esperasse uma decisão de minha parte. Eu queria ser apenas mais um do grupo, mas vi que tinha que me manifestar.

- Agora não, está muito quente. Vamos deixar para mais tarde. Olha, eu não queria pedir nada na cidade, pois com certeza os outros já passaram nas casas mais próximas.

- Só que se a gente demorar, todos vão dizer que já deram e não vamos conseguir nada – disse Pepe.

Ele tinha razão. Em outros anos isso já havia acontecido. Os que saíam cedo conseguiam as jóias melhores, quem vinha depois recebia quase sempre farinha, ou um pouco de goma, com a alegação de que já haviam ajudado.

- Este ano não vamos pedir na cidade – disse, causando espanto nos dois.

- E vamos prá onde? – indagou João Honório.

- Vamos pedir no interior – respondi, observando a cara de espanto dos irmãos. Vamos ganhar jóias melhores que eles que saíram cedo. O nosso leilão, todos os anos, é sempre o menor, o que menos arrecada. Este ano vamos ter jóias de maior valor, vamos ganhar galinhas, quem sabe até leitão – disse entusiasmado.

Por um instante vi a alegria estampada no rosto dos dois irmãos. Pepé era mais comedido, calado, não era de manifestar efusivamente os seus sentimentos. João, ao contrário, era desatinado, falava alto e gesticulava muito. Ele caminhou em círculos pela sala, punhos cerrados e a cabeça cheia de pensamentos malucos, como sempre. De repente, parou.

- Droga! Mas nós vamos prá onde? O leilão já é amanhã e eu só conheço as Frecheiras. Daqui lá são duas léguas no puro areal.

- Vamos chegar lá mortos de cansados e como é que vamos voltar, de noite, com galinha, leitão e tudo o mais? – indagou Pepé, vendo o problema de minha idéia.

Na verdade, eu não tinha pensado nisso. Na euforia de fazer um leilão maior que o dos outros anos, apresentar ofertas melhores que as do outro grupo, não tinha avaliado os problemas e riscos desse empreendimento. Havia lugares mais próximos, mas as estradas eram intrafegáveis. Três crianças sozinhas perdidas na mata não era nem bom pensar. Parecia que o sonho tinha acabado, contudo não desisti da idéia.

- Podemos ir para Santa Bárbara! – exclamei. A maior parte da estrada é piçarra e o trecho de areia é pequeno e o chão é duro.

- É mesmo – exclamou Pepé. Podemos ir de bicicleta – disse, olhando para a velha monark encostada na parede da sala.

- Eu já estive lá com Chicundé – completou João Honório.

Esquecendo o sol a pino e o calor escaldante, saímos os três empurrando a bicicleta na direção da saída da cidade. Como éramos três, João Honório pedalava, Pepé ia na garupa e eu trotando atrás. A primeira dificuldade, logo após a primeira curva, foi a ladeira do finado Celestino. Pepé desceu e ajudou a empurrar a bicicleta até vencermos o aclive. Daí, montei na garupa e ele nos seguiu trotando. Na frente, nova subida e mais uma vez tivemos que empurrá-la. Por fim, João Honório parou e me passou o veículo. Com cara de espanto e vergonha, ao mesmo tempo, recusei:

- Não sei andar de bicicleta...

João Honório e Pepé me olharam pasmos.

- Porra, cara! Como é que nós vamos para Santa Bárbara de bicicleta só um pedalando?

- E não tem o Pepé? – perguntei.

Pepé me olhou com raiva. Nós dois éramos magérrimos, mas ele era bem menor. Com certeza ele não conseguiria levar um de nós na garupa por muito tempo. Olhei para o céu e o sol reinava soberano no espaço. Não havia uma única nuvem que desse a esperança de um pouco de sombra. O calor estava insuportável e o suor escorria pelo rosto e costas, molhando a camisa. Não tínhamos certeza, mas tínhamos percorrido uns quatro quilômetros e os oito restantes eram de desanimar. Ao lado da estrada, um palmeiral mostrava sombras convidativas e para lá nos dirigimos.

Meia hora depois, reiniciamos nossa caminhada. João levou o irmão e eu já não acompanhei o ritmo dos dois. Um quilômetro após eles pararam sob uma árvore e ficaram à minha espera. Daí para frente, ele levava um por um quilômetro, enquanto o outro seguia a pé. E assim, após quase cinco horas de aventura, chegamos ao destino. Famintos, cansados e morrendo de sede. Foi um espanto para a dona Ana ver chegarem três crianças exaustas, quase sem poder falar, pedindo uma jóia para o leilão da noite dos estudantes.

- Os pais de vocês sabem o que estão fazendo? – perguntou D. Ana com um ar de reprovação.

Ficamos envergonhados, um olhando para o outro, sem coragem de falar.

- Estou vendo que não. – Falou a senhora. E continuou: O que é que vocês estão fazendo aqui, sozinhos?

João Honório, nervoso e gaguejando, respondeu:

- A gente veio pedir uma joia para o leilão da noite dos estudantes... nós somos os noitários... - falou indeciso.

- Vocês trouxeram alguma vasilha para levar a joia? - perguntou, D. Ana, ainda com ar de reprovação.

Olhamo-nos certos de que tínhamos feito tudo errado. Na verdade não tínhamos pensado em nada, a não ser em ganhar galinhas e leitões.

Balançamos a cabeça negativamente, como resposta.

- Se vocês tivessem trazido um saco, eu ia dar farinha ou mesmo goma, mas não trouxeram nada em que levar... - foi a resposta. E é melhor vocês tratarem de voltar, enquanto não escurece.

Pior do que não ganhar nada foi a lembrança do percurso que iríamos fazer de volta.