Lina & Sousa

Sete de setembro de 1951. O sol do meio dia fervia o calçamento. A multidão bem comportada acotovelava-se junto ao cordão de isolamento. O desfile militar chegara ao seu clímax: a Banda do Corpo de Fuzileiros Navais fazia suas evoluções. Lina, no seu vestido de algodão branco, apertava freneticamente a gola do corpete bordado em ponto “ilha da madeira”. Na ponta dos pés com as mãos fazendo sombra sobre os olhos negros, olhos que faziam conjunto com os cabelos cortados à “Grace Kelly”, olhava extasiada. Desde a primeira vez que assistiu ao desfile, não perdera mais nenhum. Os fuzileiros eram os seus favoritos e esse ano eles estavam com o seu uniforme de sarja vermelha. O ano passado fora o branco. Lindos! Ao término do desfile, Lina esperou a “Presidente Vargas” esvaziar-se. A multidão lhe assustava. Caminhou até o ponto da lotação Pça XV/Caju. Não tinha pressa. D. Ester, sua mãe, já deveria estar com o almoço na mesa esperando pacientemente ela chegar. Era uma boa menina. Chegara de Portugal, com os pais aos 4 anos. Instalaram-se em São Cristóvão, na Rua Teixeira Junior. Filha única, ajudava a mãe com a costura, enquanto Seu João Miguel, decorador de ambiente, lá em Portugal, exercia aqui no Brasil a profissão de pintor e gesseiro estucador. Possuía Seu João Miguel, uma equipe de profissionais ao seu comando. Mas a arte final era dele: sancas, florões, fingimento de madeira, mármore, etc.

Lina, aos 18 anos, absorvera bem a cultura deste país, desta cidade. Só a brancura da sua pele denunciava sua estrangeirice.

Nesse dia, por se tratar de um feriado, o almoço era a pescada à espanhola. Lina desculpou-se pelo atraso e sentou-se à mesa. O tio Abílio estava presente. Possuía uma pequena venda de “secos e molhados” no bairro. Os almoços de domingo e feriados eram muitos interessantes, pois João Miguel e o tio Abílio sempre contavam histórias da família e liam o jornal “Ecos da Matriz” que recebiam de Portugal com as últimas notícias. Liam sempre o obituário e quando tinha alguém conhecido, logo uma história emocionante se seguia. Lina deliciava-se com aquelas histórias. Sentia, às vezes, vontade de voltar a Portugal para rever os parentes que ficaram lá. Suas lembranças eram remotas. Mas lembrava-se bem do primo Inocêncio. Tinha 6 anos quando ela partiu de bonde de sua cidade Caminha em Viena de Castelo , próximo ao rio Minho. E ele ficou na calçada a acenar enquanto ela partia rumo a Lisboa para pegar o “paquete”.

Boa menina era Avelina Maria Pinto da Cruz que graciosamente atendia pelo apelido de Lina. Levava uma vida simples, cuidava da casa para a mãe e pequenos auxílios na costura. Estudara somente até a 4ª série. Conhecia o mundo e a vida através dos livros, dos jornais e nas suas idas ao cinema. Cineac Trianon era o seu preferido. Não perdia os musicais da Atlântida e os da Vera Cruz. Filme estrangeiro só se fosse com Tyrone Power. Gostava de ouvir rádio. Passava o dia cantando os últimos sucessos, principalmente os de Orlando Silva.

Naquele dia, depois do almoço, resolveu fazer bainha num vestido de fustão que sua mãe fizera. Queria colocar no domingo, quando fosse ao cinema. Era azul com um bolero na mesma cor. Ficara linda nele. Sua prima, também Ester, não parava de elogiá-lo.

Na fila para comprar pipoca, Lina observou um rapaz mulato em uma farda cáqui de fuzileiro que olhava para ela de maneira ostensiva. A prima Ester logo comentou: “Se fosse mais clarinho até que seria interessante”.

Acho-o bem bonito, Ester – acrescentou Lina – E aquela farda lhe dá um quê especial.

O rapaz aproximou-se e com os olhos fixos em Lina disse: – Se as moças estão sozinhas posso acompanhá-las. Será mais seguro. E sorriu. Um grande sorriso branco com duas covinhas formando-se no seu rosto. Contagiante. Irrecusável.

A sessão estava para começar. Não havia muito o que falar, só as apresentações de praxe: “Eu me chamo Sousa. Sou cabo fuzileiro Naval. Sirvo no CIAW e hoje é meu dia de licença.” “Muito prazer Lina. Essa é a minha prima Ester”.

O filme era uma comédia com Grande Otelo, Oscarito e Anselmo Duarte: “Aviso aos Navegantes”.

Na saída, o cabo Sousa convida as moças para um passeio pelo Campo de Santana. Lina estranhou o nome. Sousa explicou-lhe que era nome de guerra, uma prática militar. Seu nome era José. Como tinha muitos “Josés” na Marinha, seu nome de guerra era Sousa. Disse ainda que fazia parte da Banda do Corpo de Fuzileiros Navais na Companhia dos Corneteiros e Tambores. E que no último desfile tocara tarol. Ao ouvir isso, Lina arrepiou-se. Sim! Ele era da Banda! Em seus ombros se podia ver as insígnias e os emblemas da companhia: um tarol e uma corneta.

Sentaram num banco, enquanto terminavam um sorvete comprado na Cavê, pago pelo gentil militar. Lina contou sobre sua vinda e da sua família para Brasil o, onde moravam... Sousa também falou da sua vinda para o Rio de Janeiro. Ele era de Natal, Rio grande do Norte. Engajara na marinha aos 18 anos. Estava sozinho no Rio. Desde então, nunca mais vira sua família. Perguntou se podia encontrá-la no próximo sábado, à tarde, na Quinta da Boa Vista. Lina estava entusiasmada com o rapaz. Ester não parava de dar beliscões no braço dela. Não aprovava o entusiasmo da prima. Afinal, ele era um militar e ainda por cima mulato. O que não iriam dizer? Mesmo assim, Lina disse que iria. O cabo Sousa as acompanhou até o lotação, deixando-lhe o telefone do quartel: companhia CT – Telefone 433655 e feliz da vida dirigiu-se ao bonde assoviando Carinhoso.

No sábado combinado, Sousa chegou mais cedo. Comprou flores. Sentou-se em um banco perto do museu como combinara. E esperou toda a tarde. ”Será que ela se esqueceu?”, pensou. E quando a tarde findava-se, os portões da Quinta começavam a fechar, foi-se embora decepcionado, achando-se um tolo. “Como uma portuguesinha poderia se interessar por ele. Deu-lhe atenção só por capricho”. Por outro lado, pensou: “Se não for isso. Se aconteceu algum impedimento ela vai ligar”. Foi com esse pensamento mais consolador que Sousa conseguiu passar o final de semana.

Realmente, embora sob críticas veementes da prima, Lina estava determinada a ir ao encontro. Mesmo que a prima não quisesse acompanhá-la, daria um jeito.

Mas justamente naquele sábado seu pai recebera alguns amigos para uma reunião de apoiadores da criação de empresas nacionais à exploração do Petróleo. PTB na sua maioria, eles pretendiam se organizar em manifestações na campanha “O petróleo é nosso”. Por conta disso, Lina teve que ficar em casa para ajudar sua mãe com as iscas de bacalhau e os bolinhos de abóbora com nozes.

Durante a semana, tentou arrumar um meio de ligar. Só conseguiu na sexta-feira à tarde, quando foi ao correio levar umas cartas do tio Abílio. Tarde esta que Sousa ficara o tempo todo interrogando o telefonista de plantão para saber se alguém tinha ligado. Atrasou-se para sair do paiol. Quando passou pela guarda para pegar a lancha já passava das 17 horas.

- Alô! Alô!

- Não, senhorita. Não está. Acabou de sair.

(Silêncio)

No domingo de manhã, Lina levantou-se mais tarde. Estava com enxaqueca – talvez devido à menstruação que adiantara esse mês – “mãe, cadê minha saia de bolinha que estava aqui na cadeira?”

- Lina, coloquei no tanque. Achei que era para lavar.

- Mãe!!!

Correu para área e encontrou sua saia toda ensaboada em cima do tanque. Correu até o bolso encontrando apenas migalhas do telefone de certo cabo fuzileiro Naval, companhia CT – tel. 43... Não conseguia lembrar. Olhando para o horizonte, suspira...

Sete de setembro de 1952. Lá estava Lina novamente na Presidente Vargas. Agora tinha um motivo muito mais especial para assistir ao desfile. No clímax do desfile, ela o vê bem na segunda fileira, atrás daquele fuzileiro enorme tocando um bumbo. Ele estava com uma corneta e tirava-a dos lábios de vez em quando. “Era ele!”. Como um Lancelot de um faz de conta, no seu uniforme vermelho, fazia continência para o palanque presidencial, irradiando toda a ternura e virilidade que conquistaram a portuguesinha.

Lina, ansiosa, aguardou o final do desfile. Correu até a dispersão e não conseguia vê-lo no meio de tantos uniformes. Resolveu perguntar a um deles: “Viu o cabo Sousa? Por favor, o cabo Sousa?” “Ele está ali”.

Olhou em direção ao lugar indicado. Lá estava ele conversando e rindo com uma linda e pequena morena. Sousa passava o braço em torno da cintura da moça e saiu em direção a um grupo de fuzileiros. Tinha a intenção de apresentar a irmã aos colegas. Estava muito orgulhoso de sua pequena Lurdinha que havia se transformado numa linda mulher.

Lina afastou-se cabisbaixa. Enfim, já se passara um ano. Afinal, para ele, foi ela que lhe deu um “bolo”. Juntou-se à prima e ao amigo Arthur d’Almeida que não disfarçava seu interesse nela. E foi exatamente com esse amigo que casou tempos depois. E, anos depois, soube que ele tinha engravidado uma moça de 17 anos e iria deixá-la. E deixou. Deixou-a com os dois filhos nascidos em um bebê por nascer. Lina, às vezes, pensava: “Veio de longe para viver num país estrangeiro e acabou casando-se com um conterrâneo – Arthur era também português, branco caucasiano e a abandonara. Pobre Lina, restava-lhe criar os filhos com a ajuda de seus pais, D Ester e Seu João Miguel.

Quinze de maio de 1955, dia de pré-natal. Lina sai do hospital na Henrique Valadares e caminha até o ponto de ônibus. Senta-se num banco próximo. Não percebe que um militar passa por ela, olhando-a ostensivamente. Sousa a reconhece. Pára. Volta-se e começar a andar em sua direção. O ônibus chega. Lina levanta-se. “Grávida! Ela está grávida! Já casou!” – Decepção – Lina entra no ônibus e desaparece.

* * *

Seis de janeiro de 1966, numa manhã ensolarada ouve-se o toque de uma corneta militar entoando “O Silêncio”. Um caixão desce a terra. Fardas brancas e cinzas formam um estranho desenho em torno do caixão. Sousa caminha para o seu descanso eterno. Deixa mulher e quatro filhos menores, um ainda bebê. Morreu feliz, pois na véspera de sua morte tinha feito a mudança com a sua família para a nova casa que ele comprara pelo Plano Habitacional da Marinha. Passara cinco dias dormindo na fila para conseguir a senha. Fora um bom pai, um bom marido, um bom companheiro. Deixará saudades, uma boa pensão e um teto para seus filhos. Fora vítima de um edema pulmonar.

Primeiro de março de 2001. Tarde ensolarada. Ao som de uma oração no Cemitério do Caju, um caixão desce a terra. Lina caminha para sua última morada. Deixa um ex-marido doente e viúvo de outra, três filhos adultos e com suas próprias vidas. Deixa apenas uma casa antiga, herança dos seus pais que não mais existem. Deixará saudades. Fora vítima do descaso das autoridades. Morreu de dengue hemorrágica. Na sua lápide, apenas uma coroa de flores com a palavra Saudades, um nome: Avelina Maria Pinto da Cruz d’Almeida e uma data: 1933 – 2001.

A tarde finda num vento frio que desprende a fita lilás da coroa de flores e leva-a até a lápide vizinha: José Gomes de Sousa Filho, Cabo Fuzileiro Naval. 1931 – 1966.

NADIA DE SOUZA
Enviado por NADIA DE SOUZA em 16/07/2007
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