Lembranças de uma vida sem alma

Susana não tem medo da morte, ela tem medo é de viver, viver uma vida que não é dela. Ela tem 17 anos, terminando o ensino médio, o orgulho da família, estudiosa, sempre com um caderno e um livro nos braços, seu pai sempre dizia: “Susana será médica, a melhor da família”. Filha única de uma família formada por doutores.

Atuar, dançar, cantar e encantar o mundo com espetáculos, em meios aos livros e cadernos do cursinho sempre tem aquele onde escreve seus contos, ela interpreta todos os personagens.

É um desses personagens, cursará Medicina em Faculdade Federal, mudará para os Estados Unidos onde fará suas especializações, voltará para o Brasil se casará com um dos colegas de trabalho, terá casa, carro, dinheiro, status e dois filhos.

Não gosta do que vê e decide mudar o roteiro de improviso, decide encerrar a peça e abandonar esse personagem, mas planeja um grande final para ele.

Encontra-se sentada na calçada de casa, “será uma bela noite de lua cheia”, pensa Susana. A tarde choveu muito, mas agora o céu está limpo, a calçada ainda está úmida, o cheiro de cimento molhado excita Susana, ela se lembra dos amores que não teve, estudava muito e ocupava-se sendo o orgulho da família e esqueceu de amar, mas ela se lembra das transas rápidas nos carros de amigos ficantes, uma prostituta, vendendo sonhos, experimentando seu corpo com adolescentes cheios de hormônios a flor da pele assim como ela.

Os carros passam na rua, alguns buzinam para chamar sua atenção, algumas crianças brincam de amarelinha na calçada da frente, hoje é um dia especial, vestiu a roupa que mais gosta caprichou na maquiagem, ela abriu aquela garrafa de vinho que o pai guarda para o dia de sua formatura. Em meios aos pensamentos olha para o céu e vê a lua, uma noite clara, chegou a hora do espetáculo, abre o vidro com os calmantes que sua mãe escondia no fundo do armário do banheiro, enche a taça com o vinho que exala um cheiro muito bom. Ela toma um comprimido de cada vez, em volta com seus sonhos, que começam a se misturar com as lembranças e realidade, começa a sentir seu corpo pesado e lento até chegar ao chão por completo.

Aos poucos sente sua alma desgrudar da carne, uma dor quase insuportável. O show acabou, fecham as cortinas. Ela tinha um futuro brilhante, acabou. Não voltará. Basta saber para onde ela irá, para o paraíso ou inferno? Nenhum dos dois, ela é uma estrela e ficará no céu para dançar e encantar. Enquanto na terra foi bobo da corte para lá será atriz principal.