A Viagem

Já tenho algumas viagens, e a estrada delas, para recordar e contar, continuo a acrescentar quilómetros à minha vida, mas, por muito que ande, continuo a preferir aquela Viagem.

Não sei porquê, mas ela teima em se impor a todas as outras, se calhar foi pela idade, pelo momento, não sei, sei que ainda a recordo como se fosse ontem, apesar de já ter sido há tanto, demasiado tempo…

E o tempo volta para trás quando me recordo dela, o tempo fica congelado naquelas horas, fazendo com que as mantenha intactas, sem o desgaste na memória, porque ainda a sinto como parte do meu presente e não do passado.

Foi quando passei a uma oral no Superior.

Fiz a prova tarde, por isso, como a maioria dos estudantes universitários, deveria comemorar tal com a tradicional noite de copos.

Mas não, aquela noite estava destinada a ser diferente de todas as outras.

Quando cheguei ao pé grupo que me iria acompanhar até de manhã, um dos seus elementos sugeriu:

- Estou com saudades do mar, e tenho carro, vamos ver o mar?

Achei que aquilo era de loucos, está bem que era Julho, está bem que ainda poderíamos, logo o sol nascesse, ir desafiar as ondas do mar bravio da zona das praias mais próximas, mas, caramba, apetecia-me era uma cerveja e não asfalto e as horas que nos separavam do mar.

Antes de responder, esse amigo percebeu e insistiu:

-Apetece-me mar pá, apetece-me que me faças companhia até lá; E não vamos e voltamos logo, vamos para uma casa de pessoas minhas conhecidas; posso ir amanhã, mas quero ir agora, e quero que venhas comigo.

Ele não era um amigo qualquer, era daquele tipo raros de amigos que são família, daquele tipo de amigos a que não se nega nada, porque quando lhes pedimos algo eles nunca o recusam, porque era um amigo que considerava família, não o sendo apenas em termos de sangue, mas era-o em termos de afecto.

-Vamos então ver o mar!

Respondi convicto e com vontade de também ir ver o mar.

-A coisa vai demorar umas horas…

Disse ele quando ligou o carro, o que estranhei, porque bastava uma hora e alguma auto-estrada até à praia.

Quando ele se dirigiu à estrada secundária que a auto-estrada substituiu eu percebi.

Ele não queria apenas ver o mar, ele queria viajar, queria-se perder na noite, sabendo que tínhamos um destino, ele queria andar, andar até se fartar, ele precisava de andar naquela noite como de respirar.

E foi assim que seguimos por velhas estradas, já degradadas tanto pela falta de manutenção, como da falta de uso, estradas onde de madrugada, estavam abertos cafés para clientela nenhuma, cafés onde parámos, para beber um copo, para comprar tabaco, e quando o sol se começou a mostrar, parámos para um café, um café com cheiro a mar, porque antes de o avistarmos já o sentíamos, já sentíamos no ar aquele cheiro a sal que só o mar tinha.

E em cada café deixámos uma memória, porque entrámos a rir, dizendo quem éramos, ele exagerando : “O meu amigo fez uma prova oral dificílima, e com nota máxima!!!” (tretas, a oral era de caras e a nota foi um 10 ), e eu também : “O meu amigo está a acabar o curso, vai ser famoso, recordem a cara dele porque daqui a uns anos ele vai-se fartar de aparecer na televisão!”

Não, ele não se tornou famoso, apesar de ter acabado o curso e ter tido sucesso na vida, um sucesso discreto, bem ao gosto dele, não, não revelo mais da nossa Viagem, porque foi a Viagem de dois irmãos, dizendo e fazendo coisas que só nós poderíamos entender, foram horas que reforçaram uma amizade que vai durar até um de nós partir de vez.

O que posso dizer, é que não chegámos a tomar banho, pois chegámos demasiado cansados aonde queríamos, mas sim, vimos o mar, de uma maneira que não se irá repetir, vimos o mar, e o tempo que não pára de passar, aproximando-nos cada vez mais do fim da viagem maior, o tempo nessa noite perdeu a sua corrida contra nós, porque por muito que ele nos devore, aquela Viagem está intacta dentro de mim, e nada, nada a conseguirá apagar, esvanecer, tal só poderá acontecer no dia em que o mar que vimos se evaporar, ou no dia em que acabar essa a maior de todas as viagens, esta, onde esta história é uma das suas marcas, das suas paragens.

Miguel Patrício Gomes
Enviado por Miguel Patrício Gomes em 21/06/2016
Código do texto: T5674185
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