Viver entre pedras

Ela procura a mãe morta todas as noites nos corredores dos cafezais. Seu pai sempre diz que ela é louca igual à mãe. Ela se orgulha disso. O que Lilly nunca aceita é o fato de ter atirado contra a mãe quando tinha 4 anos de idade, provocando a morte dela, enquanto os pais brigavam em sua frente. Seu pai guardava a arma no canto inferior do roupeiro entre os travesseiros. Mas Lilly adorava brincar de esconderijo entre os travesseiros com os seus amigos imaginários. O que ela não sabia é que aquele brinquedo pesado matava gente. De verdade.

Seu pai guardava a arma para se defender dos donos dos bares da vila, pois as cobranças eram constantes na porta de sua casa. E ele pede que Lilly o agradeça por não contar a polícia que foi ela que atirou e matou a própria mãe, pois com certeza ela estaria num reformatório para menores infratores agora, apodrecendo de culpa e abandono.

O pai disse aos policiais que a mulher se matou. Que ela tinha crises depressivas constantes e que sempre pensava em se matar com a arma. Ele, como policial aposentado, tinha o dever de se proteger dos bandidos daquela vila e então escondia a arma em lugar bem seguro, onde ninguém saberia.

Mas a mulher estava tendo comportamentos estranhos depois que passou a se organizar com um grupo de mulheres à noite na vila. Ele disse ao policial que ela sempre ameaçava fugir e deixá-lo sozinho cuidando da filha, o que horrorizou o policial, que já tinha ouvido falar deste movimento secreto por ali que causava diversas brigas entre casais daquela região.

Faz dez anos que Lilly ouviu tudo por trás da porta da cozinha, calada enquanto o pai fazia o depoimento na frente de casa. O policial alertou que estava havendo outras mortes de mulheres por ali, que se ele soubesse de alguma informação útil que passasse imediatamente a polícia para apurar esta seita que estava causando várias desgraças entre as boas famílias dali.

Mesmo dez anos depois, ela se recusa a acreditar que sua mãe a abandonaria daquela forma. Sentia que o seu pai estava mentindo para além do acontecido e que estava ocultando o real motivo da briga. Lilly sempre foi muito parecida com a mãe. Tinha todo o jeito de questionar o pai, assim como a mãe fazia. E percebendo isto, trancou as janelas e a porta do quarto dela com correntes e cadeados para que ela também não tentasse fugir. Quando a mulher questiona, é sinal de que a autoridade não está sendo exercida com rigor. Então ele só abre a porta do quarto dela para ela ir até a cozinha fazer as refeições para ele, que assiste televisão e bebe o dia todo.

Ela se sente livre muitas das vezes à noite quando ele sai e vai para um bar ali perto e só volta bem tarde da madrugada. Ela então abre o cadeado com um grampo e um alicate e vai até o cafezal escrever e esperar a mãe aparecer. Lilly sabe que no fundo, tudo que viu não passou de uma alucinação ou de um pesadelo muito parecido com a vida. Que a mãe está escondida do pai, esperando a ela sair do quarto para juntas poderem fugir daquele lugar de tortura.

Quando algo parece impossível, mais desejável ele se torna. Ela sabia que o delírio era o seu refúgio, mas não admitia. Às vezes a mentira e a ilusão é a única coisa que nos mantém de pé. E resgatando a mãe dessas lembranças que não se vão e que só parecem afundá-la a cada vez mais que ela as sente, ela se protege também de sua morte psicológica. Salvando a mãe, salva a si mesma.

Cada um deseja intensamente aquilo de que mais necessita.

E contra isso, ninguém pode.

Então ela foge do quarto à noite e vai inventar histórias alegres sobre ela e sua mãe. Através delas, recria-se a sua própria e dá um tom menos amargo para as angústias noturnas em seu peito. Quando se morre na escuridão, o único jeito é criar a sua própria luz. Então a vida real se torna uma ficção e a ficção se torna a sua única realidade.

Lilly não acredita em Deus como o pai acredita. Não consegue perdoá-lo por deixar sua mãe morrer no braços daquele que a fez sofrer tanto. Deus poderia ter ao menos poupado ela de ter visto tudo evitando que ela tivesse que carregar o corpo da mãe em suas sombras pra sempre.

Mas ela tem fé. Tem fé porque acredita. E acredita porque quando não se tem escolha, a única saída é acreditar em alguma coisa e seguir um rumo. Qualquer rumo em busca de algum lugar para si mesmo.

Lilly apronta a sua mala e escreve um bilhete para o pai:

Fui procurar o amor que nunca tive.

Adeus

Ela ainda não encontrou o fantasma da mãe e nem tem indícios sobre alguma miragem dela num deserto sem alma e cor. O inverno do sul ainda não trouxe nenhuma lembrança da esperança no vento. Nem em um súbito momento o sol pela manhã lhe pareceu mais caloroso também. Mas enquanto houver desejo, haverá alguma chama lhe aquecendo o peito e lhe trazendo algum conforto em seus pesadelos. E enquanto houver esperança no amor, haverá vida latente transcorrendo águas cristalinas por caminhos secos entre pedras duras. E quando o sol surgir mais uma vez, sua luz cairá contra a força da água formando um belo raio de verão.