Ela, numa tarde de domingo
Ocorreu-lhe um dia, assim de repente, enquanto fazia a janta. A panela no fogo, o molho fervendo, e ela do nada pensou na repetição perenne da rotina diária. Fazia sentido a vida? Valia a pena o incessante acordar-limpar-cozinhar-comer-lavar-sair-entrar que constituia seus movimentos diários?
Desligou o fogo. Igual não tinha fome. Alfredo voltaria só bem entrada a noite, depois de ter ficado umas horas com sua vadia de turno. Filó, segundo as informações fiéis das fofoqueiras de plantão. Igual nem se importava mais. Quando se casou era uma criança, ilusionada com o amor voraz que lhe vendiam nas novelas. Sua mãe sempre a criou na ilusão do lar feliz, os filhos, a casa arrumada, o marido voltando e achando tudo bem limpo.
Maldita visão machista do mundo que sua mãe meteu-lhe no cérebro. Agora compreendia mais das coisas do mundo, sabia que cartõezinhos no dia dos namorados não são indicações do que vai ser o casamento. Ela também tinha o seu amante, é claro. Rodolfo. Seu amor-de-tardes-quentes. Ela o conheceu um dia saindo do trabalho, aquele posto que achou quando decidiu que ser sustentada por Alfredo era o último que queria. Mas, até isso valia alguma coisa? Rodolfo era daqueles que não querem nada sério. "Nos vemos semana que vem, amor da minha vida". E depois semanas inteiras sem uma palavra, escrita ou falada. Não que fizesse muita diferença. Ela preferia ficar em casa, com um livro na mão e a música tocando.
Saindo da cozinha, apanhou um casaco pendurado no encosto da cadeira. Parecia estar limpo. Enfiou-o no braço, viu uma mancha na manga. Sempre assim, ciclo interminável do limpa-suja do dia a dia.
Levou até a área de serviço e o colocou ali, na pia da roupa suja, cuja altura aumentava de um dia para o outro. "Para que se vive, afinal?" pensou ela de novo, dando de ombros com desânimo.
Decidiu sair de casa assim, sem casaco, sem bolsa e sem celular. Só um pouco de grana e as chaves no bolso. O dia estava lindo, o céu azul, pequenas nuvens no horizonte cortado por casas de tijolo entre árvores altas. Um passarinho cantava escondido em algum quintal, a rua estava deserta. Ela foi andando, um passo atrás do outro, sem rumo definido, sem um lugar onde chegar. Os cachorros na rua vinham ao seu encontro, sujos, magros. Mas com os olhos cheios de esperança, ansiando um pouquinho de afeto, de comida, de qualquer coisa que lhes fizesse o dia melhor.
Ela então se viu assim, como uma deles, uma mais na rua deserta da vida, esperando com ânsia por um pouquinho de reconhecimento, alguma coisa que lhe dizesse que sua existência valia a pena.