Do inconsciente
Naquela noite o frio pegou pra valer. Talvez pelo o estranho fato que, em pleno mês de junho, choveu durante quase todo o dia e continuava pela noite adentro.
Como moto e chuva não fazem um casal feliz, cheguei em casa do trabalho bastante molhado, tremendo de frio. Dia difícil. Eu só precisava de um banho quente, um chamego, uma sopa, um livro e um cobertor.
Eis que tudo se ajeitou, e de repente me vi pingando de sono esparramado no sofá com o livro na mão; a cama me chamava quentinha...
Já deitado, enrolado no edredom, enroscado de conchinha na nêga, me veio uma imagem à cabeça; era um corpo estendido no chão duro e molhado. Parecia estar dormindo ou desmaiado. Parecia estar bêbado. Parecia estar morto também. A chuva não dava tréguas, e, embora o homem no meu pensamento estivesse sob a marquise de um prédio bem conhecido na cidade, os pingos de chuva quicavam no asfalto e fatalmente o atingiam. Não tinha cobertor. Pessoas comuns com seus guarda-chuvas passavam e olhavam indiferentes, outros nem olhavam. Um motoqueiro que se parece comigo, passa e olha de relance...
Penso que talvez meu inconsciente esteja me pregando uma peça. Não tenho certeza dessa lembrança. Não sei se vi essa cena ou criei uma falsa memória, mas a imagem na cabeça me incomoda.
Me levanto e sirvo-me de uma dose cavalar de conhaque que bebo de um gole só. Sempre me ajuda a esquecer as frustrações.
Volto pra cama e começo de novo a luta pra tirar da cabeça aquela imagem esquisita. Canto mentalmente uma canção qualquer, e aos poucos vou perdendo a consciência...
No outro dia, saio cedo pro trabalho e faço o mesmo trajeto de sempre. Passando lentamente e observando, constato que não há ninguém debaixo da marquise do tal prédio.
Chego a me sentir melhor com isso. Afinal, o mundo estaria muito errado se acaso existissem pessoas dormindo na rua, numa noite fria e chuvosa enquanto eu estava em casa, enroscado em grossos cobertores, numa cama razoavelmente confortável. Não! Com certeza aquela imagem na minha cabeça era uma criação do meu inconsciente.