O Retorno

A palidez acentuada no rosto de Gervásio denunciava sua falta de saúde. A magreza incomum, o desânimo, a timidez, tudo nele pendia à decadência física e espiritual. No trabalho não participava das conversações entre os colegas e limitava-se a um gesto de ombro e, quando muito, a uma resposta lacônica tipo “sim” ou “não” quando era interpelado. Não dividia com ninguém seu estado de espirito, era convicto de que ninguém era responsável por seu jeito de ser. O destino o fizera assim, teria que conviver com todas as estranhezas do seu caráter. É certo que tinha conhecimento e, com frequência ouvia, impassível, com a mais absoluta tolerância, todas as conversas a seu respeito.

Falava-se no escritório que Gervásio precisava casar, que o seu caso era carência afetiva e que um grande amor o faria modificado, de bem com a vida. Sua rotina consistia em ir de casa para o trabalho e do trabalho para casa, onde se metia nos finais de semana; não recebia visitas, encafuado, numa solidão de causar dó e consternação. Não havia diferença entre ele estar ou não em casa, pois o cenário nunca se modificava; não dava sinais de sua presença, tampouco de sua ausência. Os vizinhos comentavam a respeito de Gervásio. Comparavam o interior de sua morada a um túmulo, pois de lá não se via nem se sentia o mínimo sinal de vida, tal o silêncio a qualquer hora do dia ou da noite.

Sobre a mesa de trabalho, no fundo da sala, mantinha os apetrechos essenciais a sua função. Nada de porta retratos, bibelôs, ou enfeites de qualquer espécie. Tinha ali o telefone, o grande livro de registros onde lançava suas anotações e um porta canetas. Ele pedira sua transferência para o setor exclusivamente burocrático do cartório onde, já há vinte e três anos vinha cumprindo fielmente suas obrigações. Não suportava mais a área de atendimento ao público; ver pessoas, ter que falar com pessoas o dia inteiro o estava consumindo e tornando-o ainda mais depressivo.

Ao contrário da maioria, é na solidão que Gervásio encontrava sua fonte de força. O som da voz humana o irritava. As fofocas, as risadinhas, por mais justificadas que fossem eram, para ele, puro sarcasmo. Os companheiros de profissão, já o conhecendo há anos, adquiriram aquele jeito de lidar com tipos excêntricos, como era o caso de Gervásio. Não o provocavam, por mínimo que fosse; mantinham dele a devida distância. Nas festas de fim de ano era excluído do amigo oculto tradicional. Sequer tentavam fazê-lo participar da brincadeira, pois sabiam que era inútil, e ele, no íntimo, agradecia essa compreensão.

A marmita, ele a preparava todas as manhas e a comia num canto do refeitório antes que a primeira pessoa ali entrasse para fazer o mesmo. Sua excentricidade não o impedia de compreender que qualquer ser humano normal gosta de trocar algumas palavras nessas horas de refeição, que é um momento de descontração e sociabilidade. Mas, como não se considerava uma pessoa normal e ele realmente não o era, esforçava-se para cumprir esse ritual de esquivar-se de contatos também nessa hora do dia.

Às cinco, ou pouco mais do que isto, descia pelas escadas do décimo segundo ao andar térreo, evitando assim mais uma vez os contatos impróprios. Ganhava a rua e, ali pelo canto, seguia solene e cabisbaixo, com as mãos enfiadas nos bolsos das calças, a aba do chapéu puxada para cima dos olhos, esses, fixos nas pedras do calçamento, como a estudar os seus contornos. Poder-se-ia dizer dele um espectro humano, uma forma indecifrável de ser, alguém tomado pelo sonambulismo; alma vagante, meio desperto, meio desligado, entregue ao sono.

Todos percebiam certas mudanças, menos nas atitudes, do que no estado físico, na aparência de Gervásio depois que Glenda passara a trabalhar naquela seção. O corte de cabelo exibia mais jovialidade; imprimira, no jeito de se vestir, um gosto distinto. Embora continuasse o mesmo reticente de antes, não conseguia disfarçar mais simpatia e boa vontade. Estava amando. Esta desconfiança de todos veio a se confirmar meses depois daquela transformação. Ele e Glenda uniram-se em casamento, na mais secreta e incomunicável celebração, o que deixou, a todos, tanto surpresos quanto admirados.

Quem poderia supor que houvesse, no mundo, um alma que pudesse afinar-se com o jeito de ser de alguém como o protagonista da nossa história? Deve ser isto prova de que o amor supera todas as excentricidades? Glenda conversava com todos, esbanjava simpatia e afeição e dedicava fervor e seriedade pela profissão que exercia. Não deixava de ter pretendentes atraídos por seus dotes físicos, que iam além da beleza para se completarem na personalidade atraente. A agudez da percepção de Gervásio detectou que, naquele coração cativante de Glenda poderia estar a sua felicidade futura, como ela deve ter-se assegurado, pela convivência profissional ao lado daquele homem, do quanto estaria por trás do seu comportamento incomum. Ela arriscou. Até que ponto acertara na decisão que tomou de tê-lo como o seu homem para uma vida a dois? É o que vamos saber.

Ele enlouqueceu em função do amor que nutria pela mulher que dera sentido a sua vida. Juntou-se, às excentricidades de Gervásio, o veneno do ciúme que acabou por destruir o seu casamento. A situação financeira adquiriu uma melhora que possibilitou, com a união dos salários, depois da união dos corpos, a mudança para um apartamento amplo e com requintes de conforto, distante do cubículo de três cômodos em que Gervásio habitou por anos a fio. Essa mudança de ambiente o tornou infeliz pela amplidão dos espaços, pelo gosto da mulher em receber visitas nos fins de semana, o que o desnorteava e motivava as brigas frequentes que passou a ter o casal.

Ele tinha saudades de sua vidinha pacata, de sua solidão, da marmita aprontada no fogãozinho de duas bocas na cozinha apertada. O quarto estreito, a cama de solteiro, ladeada pelo pequeno ventilador, o livro na cabeceira. Do quarto para o banheiro, para a saleta minúscula e daí até à estreita cozinha eram passos apenas. Jamais tivera necessidade de uma ampla sacada com vista para uma multidão de seres que lhe não despertavam o menor interesse. O astral vivaz, a arte de conversar e o carisma de Glenda, tudo em oposição à introspecção de Gervásio, passaram as ser o suplício de sua vida.

A mulher cuja paciência era o ponto forte, pois sabia que certas situações seriam inevitáveis, acabou não suportando por muito tempo as cenas de ciúme e as impertinências do seu marido. As cenas ridículas diante dos colegas antigos de profissão, as proibições a que tinha que se submeter e, sobretudo, a vergonha de Glenda diante das gafes imperdoáveis e a perda de sua autoestima colocaram um ponto final na relação entre os dois.

Tudo foi por água abaixo na atitude de Gervásio de ter visto, no casamento e nos cochichos dos companheiros, que acabou levando a sério, uma solução para a mudança de sua personalidade. Agora ele vai ter que encontrar novo jeito de ser feliz ou continuar do seu jeito: excêntrico, sem mulher, sem amigos e, se for para o seu consolo, sem ciúmes também.

Professor Edgard Santos
Enviado por Professor Edgard Santos em 14/06/2016
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