Resgate

A estrada se estende como que infinita, o lusco fusco do entardecer deixa o sol quase na linha do horizonte. A posição cansa os olhos. Mesmo com a viseira solar baixada ainda assim tenho que pilotar com os olhos semicerrados. O ronco do motor de dois cilindros da Mirage é suave, quase hipnótico. A moto desliza pela estrada, devorando o asfalto na velocidade de cruzeiro. A paisagem é monótona, os campos sem fim do cerrado, aqui e ali um monte de cupim destaca-se da paisagem como se fosse um mini Vesúvio que nunca entrará em erupção. O gado já se recolheu a seus locais de repouso. Os campos verdes de criação de gado se alternam com plantações de soja que se estendem ao infinito. Horizonte o sol se põe num ocaso selvagem e rubro como sangue. Duas nuvens solitárias estão tingidas com um escarlate soturno.

Inconscientemente meu pulso gira cinco graus, meu giro sobe, a velocidade sobe, mourões de cerca correm mais rápidos à minha direita e à minha esquerda. Dezesseis horas sobre a moto me fazem piscar, um segundo ou um minuto, não sei dizer, só me lembro de ver você, seus olhos esmeraldas imensamente abertos e uma palavra saindo de seus lábios,

- Cuidado.

Abro meus olhos de uma vez, minha mão esquerda puxa a alavanca da embreagem, o pé esquerdo pressiona suave e progressivo o pedal do freio e a mão direita pressiona o freio sem travar. Reflexos musculares agindo mesmo antes de eu pensar. Mas é tarde. Minha roda dianteira atinge a cerca de arame farpado a 130 quilômetros por hora. O arame se enrosca na roda e eu sou arremessado por sobre a cerva como um boneco de pano. Incrivelmente a moto me segue num rodopio insano. Vejo tudo em câmera lenta. Cada detalhe. Meu cérebro processando a um milhão de quilômetros por hora. O tempo se dilata. O chão se aproxima. Num reflexo que nunca imaginei ter giro o meu corpo para não quebrar o pescoço.

O Ombro direito bate primeiro no chão, a proteção de Kevlar e E.V.A. é nula. O osso da clavícula quebra num som de madeira seca. É como se alguém rachasse um carvalho. Mais alto que um tiro de canhão. O braço direito bate enquanto meu corpo gira. Ainda não senti o impacto do ombro quanto o antebraço quebra em três lugares, felizmente nenhuma fratura exposta. Continuo girando, e então eu a vejo, a Mirage rodopiando, me seguindo como uma maldição do inferno. Quando minha perna esquerda bate no chão a roda traseira me atinge como um bate estacas. Tornamos-nos um torvelinho de couro, plástico, aço, e carne.

Mercê de Deus eu desmaio.

....

Flutuo numa escuridão morna e calma. Algo brilha à minha frente. Uma luz suave, de um verde iridescente. Um verde que não existe no universo uma palavra que possa descrever adequadamente sua beleza. A luz se aproxima. É boa, calma, suave e quente. Como uma tarde modorrenta com um copo de limonada gelada na mão. Como um banho de banheira numa noite fria. Como o calor do corpo dela.

Agora posso ver a luz verde se retraiu e ainda assim ilumina a tudo. Então eu a vejo.

- Nina meu amor. O que houve?

- Meu príncipe, você está machucado. Precisa acordar.

- Não quero acordar, aqui está tão bom contigo.

- Acorde amor. Eu preciso de ti.

...

Acordo num grito primal. Uma dor absurda me tortura. É tão grande que não sei sequer onde dói realmente. É como se estivesse deitado numa cama de vidro quebrado, banhado em lava e salmoura. Tento me mexer, mas alem da dor, algo mais me tolhe os movimentos. Não consigo pensar. Dói muito. Então lá no fundo da minha mente ouço sua voz.

- Não desista amor. Você consegue. Por mim amor!

Eu tento respirar lentamente. A dor é imensa. Concentro tudo que já li e aprendi sobre controle da mente, regulo minha respiração. Sinto cada batida do coração como se fosse um martelete pneumático. Não sei como nem quanto tempo levou, mas consigo descer a dor a um patamar de insuportável ao invés de enlouquecedora. Mas há algo mais, algo como uma motosserra que não para. Só então consigo entender que estou preso debaixo da minha Mirage 250cc. E o motor não parou. Por um milagre de todos os protetores dos motociclistas a correte não cortou minha perna. Mas a pedaleira do carona está enterrada na minha barriga. Deve estar doendo, mas tudo esta doendo. Tento estender o braço direito para o interruptor de partida e desligar a moto. Erro estúpido. O braço está quebrado. Descubro da pior forma. A dor volta ao patamar de enlouquecedora. Desmaio

...

Suas mãos acariciam meus cabelos, suaves e meigas. Sinto seu perfume. La tentacion de Nina. Ela me olha com olhos doces. Verdes, como Deus pintou a esperança.

- Coragem meu amor. Luz de minha vida. Não desista.

- Dói demais Nina. Não vou aguentar. É muita dor.

Ela me sorri. Seus dentes um colar de marfim.

- Não me deixe Alberto. Não vou suportar ficar sem ti.

- É tanta dor Nina. Aqui é calmo e tranquilo. Não há dor.

- Não me deixe. Resista! Por mim.

...

Acordo novamente. Nova sessão de respiração e controle. Agora ficou mais fácil. A dor diminuiu. Isto não é bom. Posso estar entrando em choque. Com cuidado, bem devagar movo o braço esquerdo e milímetro a milímetro eu me aproximo lentamente do interruptor de partida. Depois de dez mil anos. Eu consigo pressionar o interruptor e com um estalo seco o motor da Mirage silencia. O escapamento estala suave. Respiro ofegante como se tivesse corrido a São Silvestre. Duas vezes.

...

- Muito bem amor. Descanse um minuto ou dois.

- Minha luz, acho que vou morrer aqui.

- Não se atreva Alberto. Você prometeu me proteger. Cuidar-me.

- Estou preso debaixo da moto amor, meu ombro esta quebrado, meu braço está quebrado, tenho uma pedaleira enterrada na barriga e provavelmente pelo menos uma perna fraturada. Só quando estou neste sonho é que consigo pensar. Lá fora a dor me enlouquece.

- Mas isto não é um sonho amor.

- O que é isto então? Um delírio.

- Não, você sempre me disse que me amava mais que a sua própria vida não é?

- Sim mais que tudo.

- Então, este é nosso porto seguro. Aqui, além do tempo e do espaço, nossas almas se tocam. Coragem. Não desista. Por mim.

...

Acordo mais uma vez. Menos dor. Mas muito frio. A noite está alta. Consigo ver a lua crescente e a estrela Dalva logo abaixo. Como uma lágrima pendurada no vazio abaixo da lua. Movo lentamente, minha mão até minha barriga. Engraçado a dor agora é quase um torpor como uma dormência. Toco o local onde a pedaleira do passageiro rasgou a jaqueta. Só tem uns dez centímetros a vista. Meus dedos tocam uma massa empapada e viscosa. Estou perdendo sangue. Não muito, parece que a própria pedaleira tamponou o ferimento. Mas ainda assim estou sangrando.

Sinto frio, não sei se da noite ou do estado de choque chegando. Não sinto mais dor, mas não consigo mais mexer o braço. É como tentar mover o mundo. Quero desmaiar de novo ir para aquele lugar doce e te ver de novo Nina.

- Não!!!!

Eu não vou me entregar. Você é tudo que eu mais quero. Minha vida só tem valor contigo. Cerro os dentes e busco no fundo de minha alma o mais que eu tenha de força. Recito seu nome como um mantra sagrado. Cada respiração mais lenta que a anterior.

Inspirar.

- Nina. Lembro-me de seus cabelos de seda

Expirar

- Nina. Lembro-me de seus lábios carmim.

Inspirar

- Nina. Seu cheiro doce

Expirar.

- Nina. O suor se açulando em seu umbigo quando fazemos amor.

Inspirar.

- Nina. Seu andar macio

Expirar.

- Nina. Seu sorriso de estrelas

Inspirar.

- Nina. Seus olhos verdes da cor que Deus fez a esperança.

Expirar.

- Nina, eu te amo.

.

.

.

Acordo num local branco. Algo me prende. Não há dor. Um balançar. Alguma coisa fazendo um som ritmado. Uma luz branca me cegando. Tem mais um ruído. Mas é tudo confuso. São vozes. Não da minha princesa. Estranho. Consigo focar meus olhos lentamente.

- ...nhor me entende. Senhor Alberto o senhor me entende?

Com um esforço Hercúleo balanço a cabeça. Alguém por trás de uma máscara balança a cabeça.

- Ele esta consciente.

Ele esta falando com alguém fora de meu campo de visão.

- Fique tranquilo senhor Alberto. Os analgésicos já estão fazendo efeito. O senhor vai ficar bem. O senhor deu um susto na gente. Quando tiramos o senhor debaixo da moto achamos que o senhor estava morto. Já tínhamos desistido, mas o senhor de um grito quando o colocamos na maca. Ficamos na resucitação pelo menos por 30 minutos.

- Como ... me .. encontraram ?

Parecia que eu tinha corrido a maratona de novo só pra dizer estas palavras.

- Bem é engraçado, o enfermeiro estava eufórico, uma mulher ligou para todos os escalões da Policia Rodoviária, bombeiros e SAMU dizendo do acidente. Bom ela incomodou tanta gente que acabaram mandando a gente verificar. E achamos o senhor. Tem alguém realmente muito especial esperando o senhor.

- O ... que ... ela ... disse?

- Bom, agora já vai virar lenda mesmo, não é Joaquim?

Alguém às minhas costas responde com um sim efusivo.

- Bom ela disse exatamente isto. Ele está lá caído, no quilômetro 35 preso sob a moto. Ele é minha vida, eu sou a vida dele. Não existe ele sem mim, não existo eu sem ele. Por favor, por tudo que há de mais sagrado, nos salvem. Nem ele consegue resistir para sempre. Não nos matem. E bom... Não sei como, mas nos mandaram pra cá e lá estava o senhor. Esta vai pras historias mais incríveis do mundo. O senhor sabe quem ligou?

Balanço a cabeça afirmativamente. Um sorriso bobo dançando em meus lábios.

- O nome...que ... gritei... quando... quase ... desistiram... de ... mim.

- NINA.

“... Não há você sem mim

Eu não existo sem você”

Longshot
Enviado por Longshot em 12/06/2016
Código do texto: T5664695
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