A CADELA DOURADA
A cena é impactante. Um ser irracional. Um ser da rua. Vira lata sem eira nem beira. Andando sem rumo, à procura de comida e água. Fugindo dos que não podem encontrar um bicho de rua. Gente que maltrata por prazer, por pura ruindade.
Ah, se pudesse falar! Com certeza diria: Por que vocês batem, sem motivo algum? Não tenho culpa de não ter um dono que cuide de mim!
Poderia contar sua fobia por seres humanos assim: Um dia quando havia uma festa e havia muita gente com roupa colorida, chapéu- de- palha... Umas pessoas colocaram uma coisa na minha calda. Sem saber o que era, e assustada com um chiado desconhecido, saí correndo sem rumo e PUFF! Só escutei a explosão e fui jogada a uma distância imensa. Fiquei ferida. Pedi muito sangue e se não fosse à ajuda de uma mulher que morava na casa em frente a um lugar barulhento, teria morrido. Perdi minha cauda e quando chego a ouvir qualquer barulho lembro-me daquele dia onde quase perdi a vida.
O único ser humano que não lhe causava mal, e lhe trazia boas lembranças era a Dona de sua vida. Mas, a cadela está mais esperta. Observa atentamente ao redor e qualquer movimento suspeito procura um lugar para se esconder. E foi numa ocasião esquisita quando ouviu gemidos e por medo se escondeu. Se houve algo positivo que a vida na rua lhe ensinara foi a capacidade de esperar.
Após algum tempo, uma mulher saiu dentro do mato e com andar trôpego se foi sem olhar para trás. A cadela sentiu cheiro de sangue. O odor era muito forte. Com cuidado seguiu seu faro apurado e audição perfeita. Chegou até onde seus sentidos lhe indicavam. Ali encontrou uma coisa que mexia e gemia. Estava toda molhada de algo que ela tentou com lambidas tirar. Percebeu que aquela bola de carne estava ficando com frio. Com cuidado colocou a coisa na boca e procurando as ruas mais escuras foi à procura da mulher que um dia tinha curado suas feridas.
A coisa não parecia com os filhotes que ela já tinha tido. Era maior, mais pesada. Despertou seus instintos de proteção e afeto. Sabia que se alguém viesse tirar aquela coisa da sua boca ou tentasse fazer-lhe algum mal atacaria, sem avaliar o tamanho ou a força do tal predador. Conseguiu chegar em paz. Muito cansada arranhou o portão com insistência. Latir não poderia, porque tinha na boca algo muito importante. Depois de uma longa espera eis que percebe os passos arrastados da Dona de sua vida. Ela talvez não soubesse disso, mas moraria no seu coração canino por toda sua solitária existência.
A dona da casa estava assistindo um programa, mas percebendo um arranhão no portão lembrou-se da cadela amarela, cheia de cicatrizes que vez por outra aparecia para comer e beber. Lembrava-se do triste dia que encontrou aquele serzinho ensanguentado e tremendo com fortes dores. Ela cuidou. Mas não podia ficar com a cadela. Seu marido não gostava de cão. Somente de gato. Então, a dona da casa decidiu esperar reencontrar a cadela e sempre quando ouvia os arranhões no portão já sabia que sua amiga estava ali pedindo cuidados.
Levou comida e água e quando abriu o portão quase caiu de costas. Na boca da cadela um recém-nascido. Meu Deus! Ainda bem que tinha o coração forte. A cadela abanava o toco do rabo que restara. A mulher pegou o bebê e saiu correndo para dentro de casa. Falava com a cadela como se ela entendesse.
- Você conseguiu encontrar um anjinho? Como você é especial, minha menina! Eu sabia que você valia ouro. Seus pelos são dourados, seu coração é ouro que não é encontrado aqui na terra.
Enquanto falava, enrolava o bebê, pegava o celular e ligara para a polícia. Na escola em frente à sua casa só estava o vigia, gente boa que percebendo o portão aberto veio ver se tudo estava bem e depois que percebeu o que acontecia ajudou como pôde. Mas, antes teve que a dona da casa falar pra cadela que ele era amigo, que era um homem que veio ajudar, cuidar do bebê, um homem que tinha um coração bom.
Os policiais chegaram e surpresos com a história, procuraram levar o recém-nascido para o hospital mais próximo aonde receberia os cuidados necessários. Todos que ouviram a história ficaram emocionados e a cadela passou a ser chamada de HEROÍNA. Recebeu muito afago, tiraram foto com a mesma, mas, depois, a vida seguiu a mesmice e outros assuntos ficaram em evidência. A cadela só não perdeu a fé nos seres humanos porque dois portões passaram a ficar abertos para a mesma: o da Dona de sua vida e o do vigia.
O vigia entrou em um acordo interessante. Dali em diante a cadela teria uma morada. Teria amor, cuidados e tudo mais que lhe havia sido negado, porém uma coisa ele faria, nos dias que fosse trabalhar, traria a cadela dourada no assento improvisado que colocara no bagageiro de sua bicicleta e naquelas noites, a cadela iria até ao portão da Dona de sua vida, daria uns arranhões - sua senha, até que a morte as separasse.
Outra coisa que ela queria é que seu nome fosse colocado pelos dois. Heroína lá era nome de cão? A Dona de sua vida e o vigia tinham um nome mais decente e perfeito. Pois ela não era heroína coisa nenhuma. Heroína era a Dona de sua vida. Seu nome seria: Dourada! E a partir daquele dia, do encontro da coisa fofa, que alguém disse que era um filho de homem pequenininho que a história da cadela foi mudada.
10/06/16 Ione Sak