Família por um fio
Ele chega às 21 horas em casa, exausto após 11 horas de trabalho na loja que gerencia. Se contar com o tempo preso no trânsito dá quase 13 horas, além de não fazer horário de almoço e atender sempre o celular quando está em casa reunido com a família.
O filho pequeno o vê e fica contente e corre para abraçá-lo. A mãe o afasta e pede que deixe o seu pai descansar, pois ele trabalhou muito. O garoto de cinco anos sente que sua saudade não tem valor e vai para o quarto brincar sozinho. O pai liga a televisão e coloca no canal do telejornal mais visto do país. Recortes da vida real são montados num quebra-cabeça que se encaixado, ele perceberá que estão lhe fazendo de otário. Mas ele não tem tempo para questionar nem pensar além do que lhe é pago. Alguém é pago para fazer isto, então que façam. Ele acredita na honestidade das informações e compra toda a campanha do telejornal. Compra a ideologia que vai contra a própria classe na qual ele pertence, mas não se enxerga.
A mulher lhe prepara o jantar, após ter trabalhado o dia inteiro no setor de RH da empresa que lhe paga um salário inferior ao do seu colega de trabalho, João Augusto, que faz a mesma tarefa que ela e possui o mesmo grau de conhecimento acadêmico e técnico.
O homem tira os sapatos e joga-os sobre o tapete limpo que Sandra comprou na promoção naquela loja que vende tudo em até 10 vezes sem juros. Ela reclama com ele, óbvio. Ele ignora, afinal as mulheres são todas reclamonas, como dizia o seu pai.
Ela serve-lhe o prato nas mãos e cobra o suco.
Ah, eu não fiz!
Então faça! Ordena.
Ela vai para a cozinha após mais de duas horas cozinhando enquanto cuidava do filho que ficara na creche privada em tempo integral. Todo o seu salário ia para alta mensalidade da creche particular, já que as creches públicas não oferecem nenhuma segurança efetiva aos funcionários e as crianças, principalmente.
Ela lhe traz o suco da fruta que ele ordenou. Ele não agradece. Ela senta-se no sofá ao lado dele e troca de canal para assistir sua novela. Ele se irrita e soca a perna dela, pegando o controle remoto pela mão direita. Você está louca? Não está vendo que eu estou assistindo?
Mas, Sérgio é hora da minha novela. Você sabe que eu sempre assisto aqui na sala.
Você teve tempo de assistir tudo o que você quis desde que chegou do trabalho. Vai pro nosso quarto e assiste na tevê de lá. Só não me incomode!
Sandra se levanta do sofá ainda sentindo dor na perna e vai para o quarto do casal. Davi aparece perguntando a mãe onde estaria o avião dele. Ela grita com o garoto e pede que ele procure, pois está cansada de guardar brinquedos. O menino abaixa a cabeça. É a segunda vez que é ignorado naquela noite. Sente que terá que brincar sozinho de novo, sem incomodá-los novamente.
A emissora anuncia a novela das oito, que só começa às nove. Sandra se sente completamente viva neste momento. Tudo desaparece de sua mente. Esquece que a vida existe enquanto os personagens vivem aquilo que ela muitas vezes deseja. Quem sabe ali na telenovela ela se encontre com um novo marido, um novo filho ou uma vida recheada de riquezas e intrigas por poder?
A ficção vem para nos salvar da nossa própria realidade.
Davi entra no quarto dele e vê o avião em cima do roupeiro. Tenta alcançá-lo com um sofá pequeno que a mãe lhe deu de aniversário de 4 anos. Não consegue. Vai até o quarto da mãe.
Mãe, eu posso brincar na banheira com os patinhos?
Davi, faz o que você quiser! Só sai da frente da televisão!
Mais uma para guardar esta noite.
Ele vai até a suíte do casal e abre a torneira da banheira de hidromassagem enquanto liga a tevê de 5 polegadas que fica ao lado dela. Tenta ver se o seu desenho preferido está passando em algum canal. A tevê é estranha pra ele, pois está em preto e branco. Pensa em chamar a mãe para mudar a cor, mas sabe que ela está irritada. Ele gira o botão direito ao lado do pequeno televisor para ver se encontra o canal de desenhos 24 horas. Tenta, mas não têm êxito, pois o pequeno aparelho não tem entrada para TV a cabo. E nada passa neste horário além de novelas e telejornais chatos nas emissoras abertas. Mas ele deixa o aparelho ligado, emitindo sons de pessoas conversando, substituindo a ausência dos pais que nada falam.
A tevê fala muito com os cegos, mudos e surdos.
A banheira está cheia e os patinhos boiam formando uma dança esquisita e sem ritmo. Da suíte ouve-se a voz do jornalista na sala e da personagem da novela no quarto. Ele tenta ignorar o barulho e pensa em pedir para os pais abaixarem o volume dos televisores, mas sabe que se fizer isto irá causar outra revolta na mãe e iminentemente uma bronca desta vez, do pai.
Ele desiste de lutar contra o poder deste dispositivo. Ele está sozinho nesta luta onde há apenas um guerreiro e um grande exército de um garoto solitário. Não importa o que ele sente, mas sim o que se transmite pelas telas diante da casa. As imagens mostram tantas coisas que os pais já não o enxergam.
Davi entra na banheira após tirar a roupa limpa e colocá-las no cestão de lavar. Sabe que não pode esquecer de tirá-las de lá senão sua mãe enfarta ao ver que ele sujou mais peças. Ele abre o xampu e joga na banheira para fazer espumas. Os patinhos parecem se divertir, pois balançam de forma alegre. Ele sente que os bichinhos de plástico estão vivos e sorrindo para ele. Decide então apostar uma corrida a nado com os brinquedos de plástico. Ele mergulha feliz porque sabe que pode vencer, pois faz natação desde que entrou na creche particular.
O garoto mergulha como um filhote de peixe aprendendo a nadar sem a companhia dos pais. Ao emergir, sente que tem algo encostando-se a suas costas. Ele se vira para ver o que é e a tevê vira, caindo para dentro da banheira. Davi morreu em menos de um minuto devido a parada cardíaca provocada pelo choque elétrico.
No dia seguinte, capas de jornais locais mostraram fotos e depoimentos da família que se mostrava inconsolada.
A felicidade da família estava por um fio de tomada e ninguém sabia.