Viagem

- Vinte reais, paga agora e já pode ir pra van, tá na rua de trás.

A recepção não é das mais calorosas.

Pago e me dirijo à van.

Sou o último passageiro: 8, no total.

Sento do lado de uma mulher de aproximadamente 60 anos.

Pego meu fone na bolsa, conecto ao celular, e quando estou prestes a colocá-lo nos ouvidos, ouço:

- Deixa eu te falar uma coisa, antes de você começar a ouvir música...

A frase vem da mulher ao meu lado. Obviamente, respondo:

- Sim, pode falar...

- Só queria te falar que se tem uma coisa que eu não admito, é ter dor de cabeça.

- Ah, é? - o máximo que consigo fazer é erguer as sobrancelhas.

- Sim, sabe, eu tive um marido faz um tempo... ele tomava o vidrinho inteiro de novalgina às vezes. Tinha muita dor de cabeça. Passou uns três anos assim. Até que desmaiou um dia e a gente levou pro médico. Daí lá pediram todo tipo de exame né, colocaram naquele tubão, sabe? Pra ver tudo mesmo, fizeram tudo que conseguiram. Daí descobriram que tinha coisa na cabeça, sabe, tumor. Dois. Nossa, pra mim foi um baque, bem difícil. Quando o médico me disse até falei que era mentira, mas daí vi o resultado do exame, e nossa, era mesmo. Mas eu não fiquei triste não, porque não adianta de nada ficar triste, né? Ele teve que ficar internado. Lá no hospital tinha um menino de 8 anos que tava com coisa também... igual do meu marido. Eu passava todo dia deixar uma bala lá pra ele. Ele tinha um sorriso lindo. Foi um mês e passei lá, já tava de cabelinho raspado. Mais um mês, a cama já tava vazia. Foi aí que eu entendi que essas coisas acontecem mesmo. Uma hora a gente tá aqui e outra já não tá. Eu tenho dois filhos, sabe? É muito difícil uma coisa dessas. Mas lá no hospital eu fiquei todo dia com o meu marido, no começo ele tava bem, comia tudo que davam... depois o cabelo começou a cair, emagreceu, começou a rejeitar comida... não que ele não quisesse, é que não digeria né. Mas eu tava lá, o dia todo, todos os dias. Não saí do lado dele. Meus filhos iam lá visitar ele de vez em quando. O mais velho quando aparecia era pra orar. Sabe, é evangélico, essas coisas… Eu acho ruim, que seja o que quiser né, mas eu nunca achei que isso ia ajudar meu marido. Mas às vezes isso servia de conforto pra ele né? Ou era um modo dele achar que tava sendo útil. Ele já é casado, tem um filho, coisa mais linda meu neto. Por enquanto só tenho ele. A minha filha, a mais nova, aparecia às vezes também. Mas ela não sabia bem o que fazer, se falava com ele, se falava comigo, que assunto puxava...eu também não culpo ela, a gente num sabe o que falar numa hora dessas, é muita coisa acontecendo. Eu tenho só os dois mesmo. E o meu neto. Pera aí, vou mostrar pra você.

Ela pega a bolsa, abre e acha o celular. Assim que desbloqueia o celular, posso ver: ela e o neto na piscina. Ele deve ter uns oito anos.

- Esse é o meu neto, tem seis anos. Mas crescido que é! Fala de tudo, pede de tudo, nada igual um peixinho também… Isso aqui é no aniversário dele, aluguei uma chácara, sabe.. Primeiro aniversário dele. Meu filho não gosta de festa, acredita? Aí eu falei, não, magina, esse ano vou fazer alguma coisinha né? Quer ver, ó - muda de foto, na galeria - esse aqui é o meu filho. Trinta e seis anos, casado a nove. A gente não tem tanto contato por causa da igreja mesmo. Assim, eu sou mulher vivida, sabe? Sou dos anos 70, ouvindo Led Zeppelin, Jimi Hendrix, Janes Joplin… melhores anos da minha vida. Eu era hippie. Não tomava banho, tinha pelo no sovaco, meu cabelo era todo desgrenhado. Só queria saber de paz, natureza, matinho, sabe? Não parava em casa, então eu vi muita coisa. Eu vivi muita coisa. A luta das mulheres. Eu sou dessa época, então eu não fico calada, eu faço o que eu quero, daí meu filho não aceita muita coisa. Minha filha parece que não entende nada com nada também. Agora com trinta ainda tá sozinha, mas vive pro trabalho. Acho que é por isso. Não tem tempo quase nunca. Ela trabalha de aeromoça. Eu trabalhava com viagens também, mas era de ônibus mesmo, tipo guia. Agora sou aposentada. E fico de olho na minha mãe. Tá véinha, não anda mais. Olha aqui - e mostra outra foto. Minha véinha linda. Aí vivo lá na casa dela. Vivo por ela agora. Olha só outro dia a gente aprontando - e mostra mais fotos. Eu fazendo vários penteados nela. Eu amo ela demais. É louco que meus irmãos não tão nem aí. Pai cria filho, mas filho não quer cuidar dos pais né? Tenho mais três irmãos e uma irmã. Cada um tem uma desculpa pra não ficar com ela. Eu não ligo, sabe? Não tô precisando de nada. Mas em julho, eu já avisei, vou pra Salvador. Morei lá um tempo. E agora ganhei a passagem da agência que eu trabalhava. Não vou perder, não posso. Senão fico vivendo só pra minha mãe, esqueço de mim, não dá. Eu gosto de curtir a vida… É claro que a gente tem nossos momentos de ficar triste, de pensar na vida, achar que as coisas poderiam ser melhor. Tem. Tem esses dias. Dias que a gente quer só ficar deitado. Mas sem dor de cabeça. Que se tem uma coisa que eu não admito é ter dor de cabeça. Eu não me permito. Porque olha, sempre lembro do meu marido. Tinha madrugada que ele acordava, eu ia ver, ele tava virando o vidrinho na boca, de tanta dor que tinha. Mas agora tá descansando né? E eu tô aqui repetindo as coisas já, vou deixar você em paz, pode colocar seu fone aí.

- Ah, tudo bem - digo, meio sem reação.

Aperto o play na música, mas logo sinto alguém me cutucando. É ela novamente:

- Eu não vou ficar sozinha aqui não. A hora que eu quiser conversar vou te cutucar, tá? Mas agora pode ouvir sua música sossegado aí.

Eu rio e respondo:

- Obrigado.

Kaíque Campos
Enviado por Kaíque Campos em 09/06/2016
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