Sobre o largo mangue, saciado de água, a vida rejubilava, no eterno milagre do renascimento.
No extremo de um ramo suspenso, a folhinha fazia força para sair do gomo que a resguardara.
Tinha pressa!
Precisava respirar o ar húmido. Precisava saudar o sol. Precisava encetar a alquimia de transformar os gases da atmosfera, na sua fábrica de clorofila.
Um pulgão sentiu o cheiro do parto.
O instinto levou-o pelo ramo, expectante, a pequena tromba sugadora de seiva, as células do seu ventre comandas pelas ancestrais hormonas engendrando a elaboração dos ovos, sem necessidade de cópula.
Ah como cheirava bem a folhinha e que linda família construiria nela!
Corria o mais que podia!
Na forquilha próxima, o louva-a-deus esperava, imóvel, paciente, as mãos postas, pedia aos céus que lhe caíssem nas mandíbulas vitualhas que devorasse, que fosse a si o reino dos outros, tudo o que viesse!
Nada rejeitava nunca, de tudo se aproveitava.
Nem o macho escapava, era o cúmulo da cupidez: num extremo a avidez de sexo, no outro a saciedade da gula, numa autêntica orgia gozada apenas por ela, a fêmea!
Louvava-a-deus a ventura em se que reproduzia, talvez porque rezando tanto os céus acabavam sendo vítimas do engodo que lhes tecia, comprando a sua graça com hipocrisia.
Não obstante a imobilidade aparente, os grandes olhos multifacetados, colocados no cimo da cabeça triangular, vasculhavam o horizonte, as antenas palpitavam de cobiça, vibrando em todas as direcções.
Sentiu a acre fragrância da folhinha nascente e o doce perfume do pulgão que, inocente e cego, se deslocava movido pelo primitivo instinto.
Lá em baixo, na água, um peixe arqueiro sentia doer a barriga.
Em vão vasculhara a penumbra mas nada de presa!
A fome era tanta que a barriga se lhe colaria às costas... Não fora impedi-la a bexiga-natatória, que lhe dava muito jeito quando flutuava.
Veio à superfície e espreitou para fora de água, encobrindo-se sob uma folha que boiava, amarela e indiferente, pintalgada por colónias de fungos.
O peixe, que remédio, resignava-se à conquista do sustento que lhe faltava, recorrendo ao engenho, já que o acaso falhara.
Viu a cena num relance e preparou a emboscada.
Enfim, a folhinha soltou-se, desdobrou-se, verde intensa, esplêndida, resplandecia!
O pulgão chegou-se à orla e deu-lhe uma dentadinha. Hummm, que delícia!
Colou-lhe as ventosas das patas e instalou-se feliz.
O louva-a-deus, agradecido e beato, mirou muito bem a mesa posta, apartando enfim as mãos uma da outra, preparando-se para a janta.
Deu ordem às molas das patas traseiras, contraiu todos os músculos e deu o pulo, aterrando sobre o pulgão acomodado e guloso.
As mandíbulas cravaram-se sobre o corpo humilde e mole que, se lhe não valia de muito, melhor era do que nada.
Não era bicho que se entregasse ao luxo do desperdício.
O peixe arqueiro, de baixo, esperava este momento.
Calculou a distância, distorcida pelo reverberar da luz e da profundidade a que se achava.
Num ápice, executou todos os cálculos que lhe dariam nota máxima, num exame de engenharia.
Movendo rapidamente os opérculos, tratou de fazer uma corrente de oxigénio penetrar-lhe no sangue, pelo filtro das guelras.
Concentrou as energias. Certificou-se de que a boca estava bem provida de água.
Vedou as válvulas, cerrando-as contra o corpo, pôs o focinho fora da água e rectificou os cálculos.
Cuspiu ligeiro para o alto, acertando em cheio, mesmo no centro do monstro desamparado que caiu esperneando na superfície das águas, sem que um santo lhe acudisse.
Roía ainda o pulgão, que roía a folha que... embora maculada, continuava brilhando lá em cima, operando na sua máquina a troca de dióxido de carbono por oxigénio, utilizando a energia solar.
Vazia a boca, o peixe arqueiro, usou o vácuo da mesma para sugar o almoço, de ímpeto, aspirando sem demora toda a luta em sua glória, sem perder tempo a manejar talheres nos raios das barbatanas, sem precisar guardanapo, submergindo cansado mas satisfeito, buscando abrigo na lama macia do fundo, por ventura junto a um troco caído mas seguro.