CARREGADOR MADAME?

Quando garoto, por volta dos meus onze aos doze anos, era comum a molecada do bairro, pertencentes ao meu meio, se virar como podia para conseguir uns trocados, uma vez que nossos pais, se não tinham condições de nos dar mesada, também não nos atendia quando o assunto era dar dinheiro para fins supérfluos, como a compra de figurinhas, papel para confeccionar pipa, um ingresso para o circo ou mesmo um doce na vendinha do Seu Maninho. Assim, cada um de nós tratava de ir à busca dos proventos para realizar essas proezas, até então os nossos sonhos de consumo à época.

Por vezes juntávamos caixas de papelão, embalagens plásticas, garrafas, vidros quebrados, metais e os vendiam no depósito de ferro-velho do Seu Aparecido. Mas as buscas desses materiais eram por demais árduas, haja vista que quase todos os meninos também saiam à caça numa localidade que pouca oferta oferecia, dada a humilde condição de vida e as poucas habitações existentes. Fazíamos além do trabalho de catador de sucatas, o que hoje chamamos de materiais recicláveis, algumas tarefas eventuais para vizinhos que não tinham filhos da nossa idade, como ir ao mercadinho, ao açougue ou à padaria.

Nesse período consegui que fizessem para mim um carrinho com um enorme caixote de bacalhau, duas rolimãs e uma roda de ferro de uma velha carriola de pedreiro doada pelo meu avô. Com ele fazia carretos nas feiras livres, as terças no Jardim Bonfiglioli, as sextas no Rio Pequeno e aos domingos perto de casa, na Avenida José Joaquim Seabra. Mas por ser magricela e o carrinho bem maior que o meu porte físico, causava pena às freguesas que preferiam “contratar” os meninos mais fortinhos. Sucumbi no meu primeiro empreendimento, acabei vendendo o meu veículo para um colega bem mais fortinho do que eu.

Dessa forma, íamos angariando fundos para as nossas necessidades, de acordo com as condições oferecidas. Entre a escola e as lições de casa efetuávamos um trabalhinho aqui, um jogo de bola ali no campinho, as correrias atrás das pipas, futebol de botão, bolinhas de gude até ter o conhecimento que o Nenê, um menino negro mais velho e bem mais alto que os demais, fazia o trabalho de carregador de sacolas e de carrinhos aos sábados numa feira no Itaim Bibi, nas proximidades dos Jardins, perto do Shopping Iguatemi, só madames e empregadas das mansões. Isso interessou a mim e ao amigo Edinho, o Macalé. Então combinamos que iriamos os três no próximo sábado. Antes, porém, Nenê o mais experiente nos orientou como deveríamos abordar as freguesas: – Prestem atenção, nos aproximamos da mulher quando ela estiver chegando para as compras e oferecemos os nossos serviços. – Ele explicando – Não precisa falar muito, basta se apresentar e perguntar: “carregador madame?”

O desafio maior consistia em ter o dinheiro para pegar o ônibus até o local. Conseguimos ao menos o suficiente para a ida, já a volta, caso não arrecadasse nada, seria a pé mesmo. Mas o amigo Nenê foi categórico dizendo que dificilmente deixaríamos de faturar algo.

Sem o conhecimento dos meus pais, apenas informei que iria jogar bola no campinho, me juntei aos dois, e lá fomos os três pirralhos bem cedinho no sábado rumo ao Itaim. Numa primeira abordagem, a cliente, uma senhora loira e muito elegante é interpelada pelo Nenê. Com o olhar arrogante e transmitindo um ar de compaixão, dirige-se para os dois meninos e pergunta:

– Vocês dois negrinhos são irmãos?

Macalé, para zoar, prontamente responde:

– Sim, somos irmãos, e o branquinho também – Apontando para mim.

A mulher perplexa arregala os olhos e, revelando toda a sua postura preconceituosa e racista, indaga: – Como assim? – Balançando a cabeça para os lados em tom de negativa – Como pode uma coisa dessas?

Para dar mais ênfase à resposta do amigo, eu respondo prontamente com altivez, pleno de orgulho: – Eu sou o irmão deles, irmão de criação.

Após o ocorrido, nos separamos e fomos à lida oferecendo às senhoras interessadas os nossos préstimos.

Findado o período da feira, o trio se encontra na barraca dos pasteis e confere com satisfação a arrecadação do dia. Enquanto se esbaldam comendo as iguarias recheadas acompanhada de caldo de cana, vão às gargalhas, lembrando-se da cena e da cara de espanto da madame ao ouvir que os três seriam irmãos.

Passados mais de cinquenta anos, mantive contato com o Edinho (Macalé), até ele partir desta vida vitimado pela Covid – 19, no ano de 2.020. Quanto ao Nenê, não tenho a menor ideia do seu paradeiro.

Samuel De Leonardo (Tute)
Enviado por Samuel De Leonardo (Tute) em 31/05/2016
Reeditado em 04/07/2022
Código do texto: T5653233
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2016. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.