Beba comigo no bar da Ilusão
Na noite passada eu estava num bar da periferia. Comigo estava um ex-padre que me exortava sobre os malefícios do consumo do álcool e do tabaco em excesso:
__Por que você bebe e fuma tanto, meu filho?
__Ô seu pad....digo, digo, ex-padre....É porque sou um pobre desgraçado. Não tenho emprego, nem namorada, nem ninguém, nem nada!
__Ora, eu também não tenho nada disso e, no entanto, não recorro ao vício para suportar a existência!
__ “Sua alma, sua palma”, como diriam os antigos. O senhor sabe bem disso! Cada um com o seu fardo, né?
__Já nem sei se sei. Existe algo mais triste do que um ex - alguma coisa, meu filho?
__ Sim, eu que não cheguei a ser nada não posso ser ex-qualquer coisa.
__ Tem um tempo para ouvir uma história?
__ O senhor paga mais uma cerveja?
__ Mas, se eu acabei de dizz....
__ Ouça isso, reverendo: “Dá licor ao moribundo, e vinho aos amargurados; bebam e esqueçam-se da miséria, e não se lembrem de suas aflições.…”. Provérbios, capítulo 31, versículos 6 ao 7.
__ Por favor, chega disso. Não me lembre, por favor. Pago só mais uma cerveja, viu? E em troca, ouça tudo até o final, sem interromper, ok?
__ Então, tá então...
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“Conta-se que um executivo, após ter desfrutado o máximo que seu status e dinheiro permitiram, resolveu que passaria o resto da sua vida num deserto, como um ermitão, longe de toda a civilização e progresso. Para isso, ele deixara tudo para trás: casa, carro, amigos, levando consigo apenas a roupa do corpo. Adquiriu também um dizer que era o do próprio Sidarta, o “Buda”: “ A vida é sofrimento, tudo é ilusão”. Não obstante isso, ainda complementava como Jó: “Nu sai do ventre de minha mãe, nu voltarei para o seio da terra”.
Depois de alguns meses, vários curiosos queriam ver o homem próspero que largara tudo para estar no deserto. Então, para lá se dirigiam com a cabeça repleta de dúvidas e o coração recheado de curiosidade. Quando ficavam a uma distância de mais ou menos vinte metros, o homem já envelhecido pelo sol e pela fome, barbudo e decrépito, levantava os braços e os fazia parar com o peso do olhar. Como se fora um profeta, bradava em alta voz: “Não me pergunteis nada, não direi mais que isso – tudo é ilusão”.
Assim, passaram-se sucessivas pessoas e caravanas pelo deserto, o qual chamavam de “misterioso e purificador”. Todas as pessoas que se aproximavam inquiriam o velho acerca do segredo da vida, ao que ele respondia: “Tudo é ilusão”.
Passavam jovens atletas e senhores vividos, todos com ar de severidade e busca, aparentando apreensão e dúvida. Todos paravam, embora alguns nada falassem; o velho movia os lábios num sussurro: “Tudo é ilusão”.
Vivia do que lhe davam e bebia da fonte rala que existia a dez passos da gruta, na qual se enfurnara. Sua aparência era cada vez pior. Sua mente viajava pelos mais altos planos astrais, e quiçá, espirituais, no entanto toda manhã seus olhos se abriam, suas pupilas dilatavam-se, e apesar de estar se sentindo mais calmo, leve, centrado e livre de anseios; ele voltava para si e numa auto-condenação monologava: “Tudo é ilusão”.
Um certo dia o ermitão estava,como de costume, à entrada da gruta, quando avistou ao longe duas pessoas que caminhavam como se fossem uma só; às vezes tropeçavam, noutras vezes se abaixavam e pegavam as pedras do caminho, examinavam e atiravam-nas para longe; outras vezes, chutavam-nas. Caminhavam vagarosamente, recostados um ao outro.
De repente corriam, se sentavam no chão, davam altas gargalhadas, sem mais nem menos. A seguir erguiam-se, dançavam e cantavam juntos, chorando e rindo a um só tempo.
Quando se aproximaram mais, o velho – que estava à entrada da gruta, pôde notar suas fisionomias alegres. Ele tinha os olhos altivos e brilhosos, ela os tinha fluidos e profundos. O velho sentiu a força e a convicção daqueles pares de olhos, e seu corpo esquelético sentiu a radiação daqueles corpos saudáveis. Lembrou-se de quando era jovem, mas e daí? A escolha estava feita para ele que muito vivera, que caminhara e amara daquela mesma maneira. Então o velho repetia como um sonâmbulo, para se convencer: “Tudo é ilusão”.
Os dois jovens rodopiavam num abraço apertado. Seus corpos emitiam uma espécie de calor, que estagnava a poeira ao redor de si. Nesse rodopio aproximavam cada vez mais de onde estava o velho ermitão.
Quando estavam a três passos de distância, estacaram e quedaram mudos ante àquela aparição. A única diferença é que não houve as perguntas costumeiras, que os caminhantes faziam para ele. O homem como já havia se habituado às perguntas e admirações por parte de todos que o encontravam, sentiu uma pontada no cérebro, uma enorme contração na pelve, uma certa angústia no estômago.
Com a voz semelhante a um trovão num mar de vidros, devido ao enorme esforço para falar algo diferente, depois de tantos anos; o sábio alargou as narinas respirando todo o ar que pôde, reuniu todas as forças pra ficar em pé, escorando-se em um cajado. Seus quadris tremeram, enquanto sua língua seca impelida por uma força estranha pronunciou com raiva e glória próprias: “Por que não me perguntaram a respeito da vida, a respeito de mim, como fazem os outros?”.
Os dois responderam: “__ Porque nos diria que tudo é ilusão!”.
__ Para vocês também não é uma ilusão?
__ Sim. Para nós também é uma ilusão, disse a garota sorrindo.
O ermitão sorriu, um sorriso fugaz, e tentando manter-se de pé: “__ Por que não se reclusam como eu e tantos outros antes de mim?”.
__ Porque isso também é uma ilusão, disse o rapaz. E a menos que você prove que sua ilusão é melhor que a nossa ilusão, nós seguiremos o nosso caminho!
O velho mirou o céu, depois o próprio umbigo e nada disse. Os dois entreolharam-se, deram-se as mãos e partiram cantando em altas vozes, até que ela tropeçou numa pedra afiada, cortando o dedão do pé. O velho sábio gargalhou bem alto, pela primeira vez em dez anos, ao ouvir o choro da moça e ver a tristeza do rapaz; porem, ele não contava com o que aconteceu em seguida. O jovem se abaixou, pegou o pé da menina e sorveu todo o sangue que ia saindo, como se fosse água.
Durante toda sua estada ali e mesmo lá fora na correria da vida, nunca tinha visto nada igual.De cócoras mesmo, engatinhou-se para junto do casal e seus olhos indagavam o porquê de tudo aquilo. Numerosas perguntas afloraram da cabeça ao coração: Como era possível alimentar-se do sangue e da dor de alguém, sendo esse alguém tão próximo? Como é possível viver sorvendo a dor? Como é possível sobreviver entre as dores próprias e alheias? Como fazer para conviver com a dor? Como diminuir a dor, já que ela não tem fim? Como sentir dor e ser feliz ao mesmo tempo? Como viver curando os outros e a si próprio o tempo todo? Para ele tudo era muito primitivo e não obstante, um milagre.
O jovem falava, enquanto ajudava a jovem a se erguer: __ Nós também sabemos, amigo, que tudo é uma grande ilusão, mas porque fugir da vida que nos proporciona a dor mais profunda e ao mesmo tempo, a alegria mais sublime. Bendita seja a ilusão da própria ilusão, pois dessa maneira nada sabemos ao mesmo tempo em que sabemos muito, disse a garota. Sabemos que sofremos e não abrimos mão de sofrer e de saber.
O velho quedou-se imóvel. Um lampejo de consciência rebrilhou nele. Uma dor profunda aflorou à superfície de seu corpo. Começou a tremer, a gemer e a suar frio. Antes de cair, segurou-se em um arbusto. Olhou para o corte do dedão da moça, o sangue já não corria mais, parecia que nada havia acontecido a ele, e se tudo não passara de uma grande ilusão, pensou o velho: “Bendita seja a ilusão que cura”.
Enquanto o sol quedava-se no horizonte, os dois jovens carregavam um velho decrépito e macilento nos braços. Sussurravam esperançosamente: A ilusão...é...tudo”.
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__ E aí, seu padre?
__ E aí, o quê?
__ Como termina a história?
__ Ora, como termina a história ...a história já terminou!
__ Minha cerveja também. O senhor paga mais uma?
__ Não, esgotei meu repertório de histórias moralistas.
__ Ei, seu padre, digo seu ex-padre. Ainda estou com sede!
__ Pois tome água, ora bolas!
Disse isso, jogou uma nota de vinte reais sobre o balcão, girou nos calcanhares, ganhou a rua, dobrou a esquina e desapareceu da minha vista. Mas ele voltaria, disso eu tenho certeza. Tão certo quanto amanhã estarei aqui novamente, bebendo, fumando e lamentando minhas pobrezas.