A luta (fato real)
Era um casarão amarelo claro, enorme, em construção horizontalizada, onde vários cômodos tiveram suas paredes internas derrubadas para criar o amplo vão necessário à instalação dos diversos tatames. Imensas janelas envidraçadas, cortadas nas três grandes paredes externas, permitiam ao público acompanhar, do lado de fora e sem interferência, todos os embates. Aquela obra, sede de uma das principais academias de Belo Horizonte, transformara-se num verdadeiro templo de lutas de defesa pessoal.
Era um dia festivo. Várias outras agremiações haviam sido convidadas para as solenidades de entregas de faixas, de demonstrações individuais e coletivas de variados golpes e movimentos de corpo. Havia premiações e, como atração principal do evento, a realização de várias lutas, num desafio entre aquela e outras academias da cidade. Todas as categorias seriam representadas nos combates programados.
Havíamos matriculado Edgard numa modesta academia, existente em nosso bairro, para a prática de Tae Ken Doe. Nosso intuito era dotá-lo não só de habilidades de autodefesa como, e principalmente, de desenvolver sua capacidade de autocontrole. Como suas duas irmãs, era dotado de extremo vigor físico. Seu temperamento, inquieto e provocativo, com frequência, resultava em medição de forças com amigos e vizinhos, com consequências nem sempre incólumes. Era aguerrido, corajoso e sempre obstinado a vencer. Era também ansioso, precipitado e inconsequente.
Em seus nove anos, Edgard acabara de receber sua faixa amarela, primeiro degrau de uma longa escala, muito antes do que nós, leigos, supúnhamos. Felipe, seu companheiro de esporte, um pouco mais velho e experiente, seria o protagonista de um dos embates programados para aquele dia. Ambos, orgulhosos e empolgados, pediram para que lhes fizesse companhia, levando-os, com seu sensei, até o local indicado no cartaz.
No caminho, sensei tentava passar as últimas instruções ao Felipe, que lutaria contra uma das melhores promessas da academia rival. Era, para muitos, imbatível em sua categoria. Tratava-se de um menino moreno, alto, forte e extremamente rápido. Seus golpes, aprimorados e certeiros, faziam de cada adversário mais uma vítima em sua invejável estatística. Nosso pequeno companheiro, calado, ouvia seu instrutor, que tentava, por todas as maneiras, muní-lo de confiança, apesar da qualidade de seu opositor.
À chegada ao local, já superlotado, assistia-se a um movimento agitado de inúmeros atletas, multiplicados por amigos e familiares, que se tornariam, em breve, torcedores alucinados. Concordei que o Edgard permanecesse no interior da academia, para que pudesse vivenciar, mais de perto, aquele clima de competição, preparando-se para futuras oportunidades.
As solenidades tiveram início com a premiação dos atletas de destaque municipal, em cada categoria. Edgard, como tantos outros meninos, postava-se sentado, com as costas coladas à parede, compenetrado e atento a tudo. Seu amigo Felipe participara de demonstrações de golpes, sendo muito aplaudido, mais ainda por meu filho. O ambiente era de completa disciplina e grande respeito, características das artes orientais.
Encerrada a etapa inicial da programação, grande agitação toma conta daquela multidão, com o anúncio das primeiras lutas do dia. Procurando um lugar melhor junto a uma das janelas, disputando ínfimos espaços, ouvia prognósticos, apostas e até algumas provocações. A torcida da academia patrocinadora era, seguramente, composta da grande maioria daqueles excitados expectadores. Era eu um torcedor isolado de uma desconhecida e quase inexpressiva agremiação.
Seguidos combates apresentaram atletas com grandes performances, uns muito disputados, outros de conclusão rápida, pela contusão sofrida por alguns dos contendores. Tão próximo do tatame, ainda que separado por uma parede, fixara-me na análise das expressões faciais daqueles que, face a face, enfrentavam o perigo que rondava à sua frente, embalados por ruidosa gritaria, até a decisão final dos juízes. Carregado de simbolismo, aquele braço estendido em direção ao vencedor, detonava verdadeira explosão de júbilo de parte da torcida. Refleti sobre a insensibilidade humana quando um golpe brutal desacordou um dos contendores, exigindo cuidados imediatos e encaminhamento a hospital, sob urros, vivas e aplausos generalizados.
Era chegado o momento da contenda que envolveria nossa academia, na categoria de pequenos e novatos, da qual nossos jovens atletas, ali presentes, participariam. No chamamento dos contendores, o anúncio do nome de nosso oponente fora saudado ruidosamente por aquela multidão. Já sentia um certo frio na barriga, quando o microfone anuncia o nome do Edgard como representante de nosso grupo. Vê-lo levantar-se e iniciar seu aquecimento para aquele embate me enlouquecera. Tomei imediatamente o rumo da porta que dava acesso ao grande salão, sem sucesso. Trancada, minhas batidas e gritos eram absolutamente ignorados pelos que, do lado de dentro, cumpriam ordens à risca. A luta teria início imediato. Nada mais havia a fazer a não ser correr, procurar novamente um lugar junto aos janelões e torcer. Sozinho. Alucinadamente.
A luta estava prevista para dois tempos. Edgard parecia ter sido empurrado para uma arena cercado de hienas famintas, diante do massacre eminente. Iniciada a luta, olhava fixamente para seu opositor, enquanto recebia toda sorte de golpes, sob o delírio da galera ensandecida. Desferia, a cada golpe recebido, seu único bom revide, um chute lateral alto, chamado de bandal, que apanhava seu oponente na coxa e na altura do rim esquerdo. Aquele pequeno projeto de Mike Tyson, com quem lutava, parecia não se abalar, exibindo viril e orgulhosamente seu variado repertório. Me surpreendi gritando e esbravejando, tentando, a plenos pulmões, compensar aquela injusta desproporção de torcida, empurrando o Edgard para cima de seu algoz.
Edgard não me via, nem mesmo ouvia. Nem poderia. Numa fração de segundos, seu adversário girara o corpo, dando-lhe as costas e desferindo-lhe um violento golpe com a sola do pé no meio do peito, jogando-o a alguns metros do tatame. A turba urrava em delírio, quando, em desespero, gritava-lhe para voltar.
-‘’Quebra ele Edgard! Acaba com ele! Arrebenta ele! Volta!’’
Minha angústia transformara-se em raiva e desejo de vingança. Por ironia, aquele que há pouco fazia uma reflexão critica da insensibilidade humana, estava a se comportar como um dos piores de sua espécie. Não me importava. Era o meu Edgard que estava ali, sozinho, aos lobos. Tão logo voltara ao tatame, encerrara-se o primeiro tempo, quando fora chamado por seu sensei para algumas instruções.
Tentei aproveitar, sem sucesso, aquele breve momento de trégua da torcida contrária. Meus gritos, que lá fora soavam como estertor isolado de uma derrota anunciada, não eram ouvidos do lado de dentro.
Começara o segundo tempo e meus olhos, embaçados pela emoção, não podiam acreditar no que viam. Meu filho parecia outro. Aquele velho Edgard, inconformado e alucinado das brigas de rua estava ali, presente, ágil e feroz como um felino, desferindo golpes que, de tão inusitados, deduzi que tinha aprendido ali mesmo, apanhando. Seus chutes bandal partiam mais fortes e contundentes, começando a machucar e curvar seu oponente que, com o passar do tempo, passara a proteger-se mais, perdendo a volúpia do inicio.
Meu coração explodiu em alegria quando meu herói, num repente idêntico ao do primeiro tempo, devolveu o mesmo golpe sofrido no peito, no mesmo local, com o mesmo impacto e resultado, fazendo seu adversário quase voar do tatame. O silencio da turba, surpresa, serviu de fundo aos meus gritos alucinados de orgulho e êxtase total. Nosso opositor voltara ao tatame mais atônito que sua torcida, passando a precaver-se de novas surpresas até o final da contenda. Simulara e acusara, por duas vezes, o atingimento de seus órgãos genitais pelos pontapés recebidos.
Finda a luta, a longa demora no anúncio do resultado prenunciava uma decisão difícil, de um provável empate. Finalmente, a vitória anunciada ao nosso adversário fora justificada pelos dois golpes baixos acusados. Edgard sentiu mais a decisão que todos os golpes que havia sofrido. Não teve a oportunidade de saborear sua maior conquista, que foram os comentários unânimes e reconhecidos daqueles, que há pouco, torciam por sua derrota.
Soube, depois, que Felipe passara mal minutos antes da luta, tendo desarranjos intestinais e enjôos de estômago. Sem opção, sensei perguntara a meu filho se encararia nosso adversário. Sua precipitação e inconsequência, tão minhas conhecidas, o fizeram responder afirmativamente. Voltávamos para casa com festejos acalorados e cumprimentos a um Edgard calado, contrariado e pensativo, ainda preso aos momentos de sua luta.
Eu encontrara meu grande e maior ídolo. Um ídolo inconformado.
-”Mas eu perdi. Mas eu perdi.’’